Geisy desiste em definitivo da Uniban
A estudante de Turismo Geisy Arruda, de 20 anos, desistiu de voltar a frequentar a Universidade Bandeirante (Uniban) de São Bernardo do Campo. Em entrevista nesta quarta-feira (25), a jovem afirmou que “não tem mais clima” para voltar ao campus onde foi hostilizada por ir à aula com um vestido curto.
“Farei uns seis vestibulares direto, para decidir o melhor”, contou. Para Geisy, que cursa o primeiro período de Turismo, o ano está perdido. “Não assisti a várias aulas e perdi diversas provas.” Ela afirmou, porém, que não desistiu do sonho de se formar em turismo.
Na quinta-feira (26), a estudante irá prestar depoimento na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de São Bernardo, no ABC, onde um inquérito sobre seu caso é realizado.
Procurada, a Uniban informou que ainda não recebeu notificação formal da saída da estudante.
Relembre o caso
Matéria publicada sábado retrasado na Revista Istoé
Geisy Arruda vive no alto de uma ladeira repleta de construções modestas e inacabadas. Cresceu ali, na periferia de Diadema, município de 390 mil habitantes fincado entre a capital paulista e São Bernardo do Campo, berço do sindicalismo nacional. Quando seus pais migraram do agreste pernambucano, no final da década de 70, o Jardim Campanário não havia sido tomado pelo concreto. José Adriano era o único filho do casal. "Eu não tinha nem documento, fui registrado em São Paulo", conta o primogênito. "Moramos numa vielinha próxima, depois numa casa quase em frente à que temos hoje." Em Diadema, a família aumentou. Nasceram três meninas. Geisy, a do meio, é a única solteira e que ainda mora com os pais. Severino e Maria de Fátima estudaram até a quarta série. Ele trabalha como supervisor de limpeza. Ela é dona de casa. Apesar do orçamento apertado, fazem questão de investir no futuro da filha. Bancaram inglês e informática enquanto puderam. Desde o início do ano, suados R$ 310 vão para as mensalidades do curso de turismo. "Pesquisei muito antes de prestar vestibular", diz Geisy. "Escolhi a Uniban (Universidade Bandeirante) porque era a única que os meus pais poderiam pagar."
Severino e Maria de Fátima acreditavam que, no ambiente universitário a que eles próprios não tiveram acesso, Geisy estaria cercada de pessoas sensatas e equilibradas - e livre da violência cotidiana. Terrível engano. Exposta na internet, a vergonha de Geisy viajou pelo mundo. Chineses, americanos, filipinos, paquistaneses... Gente de todos os cantos assistiu à humilhação imposta por cerca de 800 alunos enlouquecidos que, em coro, urravam "puuuuta", "vamos linchar", "vamos estuprar", simplesmente porque ela usava um vestido curto. E viu a execração pública partir da própria Uniban, que divulgou anúncio nos grandes jornais comunicando a expulsão de Geisy, sob alegação de que ela costumava usar "trajes inadequados", num "flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade". A universidade, que também tem como missão ensinar valores e formar cidadãos, agiu com truculência ainda mais espantosa de que seus alunos - numa demonstração de que não tem condições de oferecer educação adequada.
As agressões, primeiro dos alunos e depois da própria universidade, transformaram o caso num símbolo de covardia e intolerância. A imprensa internacional deu amplo destaque ao caso. Na noite da terça-feira 10, o escândalo era a segunda notícia mais acessada no site da CNN (cnn.com) por internautas do mundo todo. Diante da repercussão negativa, a universidade decidiu readmitir a aluna, mas não puniu nenhum dos seus agressores.
A readmissão de Geisy não encerra o caso. É preciso estar atento ao significado deste episódio, pois a sociedade não pode permitir que seja aberto um perigoso precedente para um retrocesso de valores e costumes. É imperativo garantir que não surjam outras Geisys e que pessoas não sejam humilhadas e agredidas pelas roupas que usam. "Temos de marcar posição, dizer que não concordamos com essas atitudes", diz o psicólogo Marcos Nascimento, codiretor do Instituto Promundo, ONG que defende a igualdade de gêneros. "E não apenas neste caso isolado. Não concordamos com a condição do ensino e a maneira pela qual a mulher brasileira é tratada."
Geisy foi duplamente humilhada. Ao repreendê-la por estar de vestido curto, os seguranças do campus de São Bernardo legitimaram a violência da turba que ameaçava estuprá-la e não a protegeram do assédio coletivo. Geisy só conseguiu passar pela multidão sob escolta policial e com muito spray de pimenta. "Na maioria das vezes, as mulheres são vítimas de agressões e desrespeito independentemente da maneira como se vestem. São consideradas prostitutas e vagabundas sempre que manifestam seus desejos", afirma a advogada Valéria Pandjiarjian, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. "Para muitas pessoas, ainda é inadmissível que tenham autonomia para fazer o que querem com o próprio corpo."
Naquela trágica noite, Geisy chegou atrasada. "Quando ela subiu a rampa, alguns meninos começaram a assoviar e gritar porque dava a impressão de que ela estivesse sem calcinha. Mas era só impressão", afirma a colega de classe Paola Cristina Fernandes, 19 anos. Pouco antes do intervalo, as duas decidiram ir ao banheiro. No caminho, uma desconhecida abordou Geisy dizendo que gostaria de lhe apresentar um amigo. Paola seguiu sozinha enquanto Geisy trocava algumas palavras com o rapaz. "Quando ela entrou, umas 18 ou 20 meninas invadiram o banheiro. Pensei que fossem bater nela", relata Paola. Incomodada com o comprimento do vestido rosa-choque, uma delas chegou a oferecer um short para que Geisy cobrisse as pernas. Ela só conseguiu sair dali numa espécie de cordão de isolamento improvisado pelas amigas e um professor. As amigas foram afastando alunos que, com celulares em punho, tentavam filmar entre as pernas de Geisy.
O MEC acompanha de longe o desenrolar do caso Geisy. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, afirma que sob a sua alçada estão apenas as questões pedagógicas, didáticas e avaliativas. E que a decisão da Uniban de revogar a expulsão mostra que não houve crime naquele episódio. Questionado por ISTOÉ se o machismo, o preconceito e a intolerância não seriam problemas relacionados à pasta, eximiu-se de responsabilidade alegando tratar-se de uma questão de comportamento social e não educacional. Esta é a resposta fácil. Mas vários crimes foram cometidos na Uniban (leia quadro na pág. anterior). Por isso, a sociedade tem de cobrar das autoridades uma resposta à altura, para ter garantias de que nenhum cidadão será a Geisy de amanhã, dentro ou fora de instituições de ensino.
A readmissão de Geisy foi determinada pelo reitor Heitor Pinto e Silva Filho, 63 anos, conhecido nos corredores da universidade como um administrador centralizador e reservado. Silva Filho investiu pesado na aquisição de escolas em São Paulo nas últimas décadas. Há 15 anos, as reuniu e criou a Uniban. Quando saiu candidato a vicegovernador de São Paulo, em 2002, na chapa de Paulo Maluf, declarou à Justiça Eleitoral ser dono de um patrimônio avaliado em R$ 34 milhões. Na juventude, Silva Filho foi militante da Arena, partido de sustentação dos governos militares. Mas a experiência política parece não tê-lo ajudado na condução desse escândalo. A advogada Carmen Hein de Campos, perita em questões de gênero, acredita que a Uniban tenha tentado manter os cofres cheios ao mandar para fora uma única pessoa, Geisy, a "aluna-problema". "Ao tomar uma decisão simplista, a universidade se negou a fazer uma discussão interna e a gravidade da violência saiu pela tangente. Do ponto de vista econômico, seria muito mais vantajoso expulsar uma aluna do que centenas", diz.
Independentemente da motivação inicial, a Uniban voltou atrás por causa da repercussão negativa na imprensa brasileira e no Exterior. E depois de ser bombardeada por instituições como MEC, MPF, Ordem dos Advogados do Brasil, União Nacional dos Estudantes e Procon. Alunos da Universidade de Brasília (UnB) chegaram a tirar a roupa em apoio à colega paulista. "Em parte, a repercussão influenciou, como influenciaria qualquer instituição. Precisamos de um certo estardalhaço para ver se estamos na trilha certa", reconheceu Ellis Brown, vice-reitor da Uniban. Mesmo assim, Brown não admitiu que a universidade errou. "Ao revogar a decisão do conselho universitário, o reitor não colocou em questão a apuração (da sindicância), uma vez que a decisão da expulsar Geisy se baseou no regime disciplinar da instituição. O que pretendemos a partir de agora é refletir sobre o assunto e tomar ações educativas para que tanto o comportamento da estudante quanto o dos seus colegas não se repita."
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