quarta-feira, 19 de agosto de 2009

'Trabalho na MSF é como um 'Big Brother' sem o prêmio', diz brasileira

Por G1
Publicado por Kassu - 19/08/2009 às 13h08


A médica Carla Satie Kamitsuji durante trabalho em campo para o Médicos Sem Fronteiras
(Foto: Álbum de família)

. Paulistana ‘da gema’, Carla Satie Kamitsuji é clara ao falar para os novatos sobre o trabalho na Médicos Sem Fronteiras (MSF).

“Se sua motivação é financeira ou porque não encontra emprego no Brasil, então, MSF não é para você!”, afirma ela, direto da Cisjordânia. “A vida na família MSF no terreno (em campo) é como um ‘Big Brother’ sem câmeras e sem o prêmio em dinheiro”, resume.

A médica psiquiatra entrou na instituição em 2007 e desde então passou também por Uganda e Iraque. Já teve que tomar banhos de balde, viver sem energia elétrica por quatro meses e conviver com baratas e ratos na cozinha. E em nenhum momento ela, que sempre foi uma ‘garota da cidade’, se arrependeu. E tudo começou com um trabalho que fez para o Exército brasileiro na Amazônia.


“Um acidente de carro que sofri no final de 2002 foi fator decisivo para eu escolher ir para Manaus servir à Marinha. Percebi que a vida é muito curta para ficarmos adiando planos, para não darmos atenção às vontades latentes, sonhos considerados por muitos como ‘loucuras’”, afirma.


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“Em 2006, eu estava em um ciclo da minha vida que me sentia ‘escrava do dinheiro’ e não estava satisfeita. Eu sabia que queria tentar algo diferente e trabalhar com MSF era algo que eu tinha certeza que queria experimentar naquele momento”, conta.


Leia a íntegra da entrevista abaixo:

O que dizer para as pessoas que querem entrar na MSF?
Se neste momento da sua vida trabalhar com MSF é algo que você gostaria de experimentar, vá em frente... tente, experimente! Vale a pena! É uma experiência de vida (pessoal e profissional) riquíssima e inesquecível! Se sua motivação é financeira ou porque não encontra emprego no Brasil, então, MSF não é para você!

Pensando justamente nos novatos ou nos interessados em trabalhar na área, quais são os benefícios de se trabalhar na MSF?
Os benefícios são decorrentes da experiência de viver em outro país, com pessoas de países diferentes com línguas e costumes diferentes, exercer sua profissão em contextos cheios de adversidades (catástrofes e conflitos).

Por que quis fazer parte de Médicos Sem Fronteiras?
Em 2006, eu estava em um ciclo da minha vida que me sentia “escrava do dinheiro” e não estava satisfeita. Eu sabia que queria tentar algo diferente e trabalhar com MSF era algo que eu tinha certeza que queria experimentar naquele momento. Não sabia se iria me adaptar ao trabalho, mas sabia que eu tinha de tentar.

Antes de eu entrar na faculdade de Medicina, tinha vontade de trabalhar para Cruz Vermelha, ONU, ONGs que atuavam em regiões desfavorecidas. Ao entrar na faculdade essa vontade ficou latente, perdeu força, pois o mundo acadêmico passou a exercer um fascínio sobre mim. Comecei a ter planos de seguir uma carreira acadêmica. Todo ano representantes das Forças Armadas vão a algumas faculdades de Medicina recrutar voluntários para servirem um ano como médicos em uma das forças (Marinha, Exército ou Aeronáutica). Os homens são obrigados a se reapresentarem, mesmo que tenham sido dispensados aos 18 anos. Já para as mulheres, é totalmente voluntário. No meu sexto e último ano (2002) da faculdade não foi diferente. Ao assistir ao vídeo da Marinha que mostrava o trabalho dos médicos nos navios-hospitais na região amazônica, aquela vontade latente de fazer trabalho em regiões menos privilegiadas e carentes de recursos médicos ganhou força.

Um acidente de carro que sofri no final de 2002 foi fator decisivo para eu escolher ir para Manaus servir a Marinha. Percebi que a vida é muito curta para ficarmos adiando planos, para não darmos atenção às vontades latentes, sonhos considerados por muitos como “loucuras”. A experiência em Manaus foi uma das melhores de minha vida. Aprendi e cresci muito como pessoa e profissionalmente. Pude conhecer um pouco mais do meu país (povo, cultura, a “Floresta Amazônica”) e valorizá-lo. Sem sombra de dúvidas, posso dizer que meu ano lá foi um dos melhores da minha vida.

Foi essa experiência na Amazônia que me motivou a buscar mais informações sobre MSF e decidir que queria experimentar o trabalho com a organização.

Como foi o recrutamento? Tudo foi explicado antes do você ir trabalhar na região onde está?
O meu recrutamento foi mais rápido que o usual. Em meados de 2006, MSF Brasil começou a recrutar brasileiros no país. Em novembro de 2006 assisti a uma palestra informativa sobre MSF em São Paulo. Fui informada que estavam recrutando psiquiatras e dias depois enviei meu CV e carta motivacional. No final de novembro, recebi a notícia que tinha sido aprovada para a segunda fase (entrevista e dinâmicas de grupo). Dia 27 de dezembro, fui para o escritório do MSF no RJ para entrevista e dinâmicas de grupo e dia 28 eu recebi a notícia que tinha sido aprovada para trabalhar com MSF. Dia 11 de janeiro de 2007, saí do Brasil para minha primeira missão com MSF. Antes de eu partir recebi várias informações sobre o país e contexto do local onde fui trabalhar, no caso norte de Uganda. Recebi um apoio muito bom da recrutadora doescritório do MSF Brasil antes de partir.

Como foi sua adaptação?
Na minha primeira missão com MSF em 2007 em Uganda minha adaptação foi mais rápida do que eu esperava, pois a diferença nas condições de vida foi grande. Nasci e cresci na cidade de São Paulo – sou uma “garota da cidade”. Meu pai me chamava “pó-de-arroz” e quando eu falei sobre minhas condições de vida no campo de deslocados internos (IDP = Internally Displaced People) onde eu morei por 9 meses, ele pensou “nossa, como será que ela está se adaptando a essas condições de vida ‘adversas’?”. Latrinas, banho de balde, sem água encanada ou saneamento básico, sem energia elétrica (nos quatro primeiros meses), pouca variedade de alimentos (frutas, verduras ou legumes), cozinha com visitantes noturnos como ratos e baratas, além dos insetos voadores. Eu me surpreendi comigo mesma. Em um mês já estava completamente adaptada! A vida na família MSF (expatriados) no terreno (field) é como um “Big Brother” sem câmeras e sem o prêmio em dinheiro. Trabalhávamos de segunda a sexta-feira (8h – 17h) e sábado (8h – 13h). Nos fins de semana, para lazer tínhamos opções de assistir a filmes no computador, ler livros, andar pelo campo de deslocados internos, jogar bilhar na única mesa de bilhar num bar do campo de 22 mil pessoas. A cada três meses, tive 1 semana de férias.

Quando estava de volta ao Brasil, entre minha primeira e segunda missão eu valorizei muito mais minha casa e minhas condições de vida em São Paulo. Quando cheguei à minha casa após nove meses em Uganda, um dos primeiros pensamentos que veio a minha cabeça foi: “Nossa, como sou privilegiada! Desde que nasci tive uma vida ‘luxuosa’!”.

Na minha segunda missão com MSF em 2008 no Iraque (onde ficou 4,5 meses), a adaptação foi super rápida e muito mais fácil. Isso porque houve um “upgrade”. Lá morei em uma casa com energia elétrica (não por 24h – tínhamos gerador na casa), privada, água encanada, água quente, chuveiro, internet wireless, televisão com inúmeros canais (na casa havia antena parabólica), ar condicionado, grande variedade de alimentos (frutas, verduras, legumes, etc). Trabalhávamos de domingo a quinta (8h – 17h). Final de semana era sexta e sábado. Nos fins de semana, para lazer as opções eram: almoçar ou jantar fora, fazer compras no supermercado ou shopping, visitar o centro velho da cidade, ler livros, assistir a filmes, internet. Após três meses, tive uma semana de férias.

Nesta minha terceira missão com MSF – estou na Cisjordânia desde janeiro deste ano e ficarei até meados de outubro – o período de adaptação foi mais rápido que no Iraque. Parte pelo fato que já estava familiarizada com a comunidade árabe / muçulmana. A condição de vida aqui foi mais um “upgrade”. Na casa, temos sistema de aquecimento central, energia elétrica 24h por dia, microondas, além de todos os outros benefícios que eu tive no Iraque. Trabalhamos de domingo a quarta (8h – 16h) e quinta (8h – 15h). Assim como no Iraque, fins de semana são sexta e sábado. As opções de lazer são: assistir a filmes, ler livros, internet, visitar o centro velho da cidade, almoçar ou jantar fora. Uma vez por mês nós (equipe do terreno) vamos para Jerusalém para supervisão técnica e apoio psicológico. Aqui também a cada três meses temos uma semana de férias.

Quais foram as suas principais dificuldades?
Em Uganda, a principal dificuldade foi adaptar-me a vida estilo “Big Brother”, pois os expatriados na missão acabam sendo a sua família. Somos pessoas de diversos países, com culturas e costumes diferentes e geralmente nos comunicamos em uma língua que não é a nossa língua mãe, o que dá margens para vários mal entendidos.


No Iraque, a principal dificuldade foi a restrição de movimentação. A maior parte do tempo, fora do horário de trabalho, nós (expatriados) estávamos confinados na casa. Eu tive a sorte de ter de me deslocar entre duas cidades. A mudança de ambientes ajudava a não me sentir tão confinada.

Aqui em Hebron (Cisjordânia), a principal dificuldade é “sentir na pele” a tensão do conflito entre israelenses e palestinos. O muro que os separa fisicamente simboliza a separação invisível, imensurável que não permite que eles se misturem de forma amigável... é como água e óleo

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