domingo, 24 de outubro de 2010

Viagem de Gabi - San Matias - Parte III (final)

 Escrito ór Gabi e publicado por Kassu em 24/10/2010 às 19h04
Acordei 5h da manhã e tentei sair para comprar passagem (disseram-me que tem fila e os primeiros pegam os melhores lugares no ônibus). Mas o portão do hotel estava fechado e precisei esperar até 6h para os donos resolverem abrir. Não fez diferença, porque a cidade continuava em greve, guichês de comprar passagem estavam fechados. Algumas coisas abriram: açougue, a feira com barraquinhas vendendo legumes e verduras. Tudo numa sujeira braba. Melhor nem pensar na procedência dos ingredientes do El Pantanal.

Os comerciantes confirmaram que a greve continuava e o rádio havia anunciado que nenhum ônibus chegaria ou sairia de San Matias naquele dia. Encorajaram-me a ficar mais uma noite, porque no dia seguinte haveria ônibus para Santa Cruz "com certeza". Foi quando me deu o chilique e decidi que não ficaria ali nem por mais meia hora!


Placa: "no habra atencion hoy dia 19_10_10 motivo paro cívico de 24Hrs".
Ainda se fossem apenas 24h...

Saí a passos rápidos (ritmo de paulistana com pressa) para o hotel, enfiei as coisas na mochila de qualquer jeito, entreguei a chave e fui embora. Fui para fora do centro da cidade, na esperança de encontrar um taxi que furasse a greve. Apenas um passou por mim, e não quis parar. Continuei andando para lá e para cá, muito nervosa. Um boliviano sentado na calçada de sua casa fez um sinal com a mão, para que eu me aproximasse. Expliquei a situação. Passou um amigo dele de moto, os dois começaram a conversar. O motoqueiro ficou me olhando, parece que com pena. Respirei fundo e me aproximei, ofereci 20 bolivianos para ele me levar até a fronteira. Topou na hora.

Papagaio que ficava empoleirado no escorredor de pratos do hotel. Exemplo de higiene boliviana...

Foi assim que consegui sair da Bolívia: de moto, com uma mochila de 10 Kg nas costas e outra de 2 Kg pendurada na frente do corpo, louca para voltar ao Brasil, à beira de um ataque de nervos. Atravessei a pé o limite entre os dois países, fui revistada pela polícia federal. O policial fez muitas perguntas, meio desconfiado. Não estão acostumados com turistas, muito menos com moça novinha andando sozinha por aí. Mas assim que tirou da minha mochila um pacote de roupas sujas, algumas meias, calcinhas e guias de viagem, parece que se convenceu de que eu não tinha drogas nem muamba. “Você tem coragem, moça! Andar por aqui sozinha...”

Fiquei em Corixa durante 2h, esperando o ônibus partir. Aos poucos outras pessoas foram saindo da Bolívia e se juntando a nós. Começaram as conversas, logo vieram as discussões sobre política. Uma mulher falou que a Dilma queria acabar com todas as religiões no Brasil, ouviu isso no debate. Perguntei:

- Mas foi isso mesmo que ela disse? Tem certeza? Foi exatamente assim?
- Foi! Ela disse que presidente não tem religião, que é a favor do aborto e do casamento de gays e lésbicas! Mas isso é contra a Bíblia, é contra a palavra de Deus!
- Eu acho que o governo não pode mesmo ter religião. Porque tem que dar espaço para cada um ter a religião que quiser. Ou até pra não ter religião, se quiser.
- Isso é contra a Bíblia! Contra a palavra de Deus! Eu sou Adventista do Sétimo Dia e...
- Então, a senhora é adventista, tem gente que é católico, protestante, budista, umbandista... O governo tem que dar espaço para todos.
- (Exaltada) Isso é contra a Bíblia! Põe a mão aqui em cima! (me mostrou a Bíblia) Põe a mão, que você vai entortar!

Pus a mão sobre a Bíblia da mulher, olhei nos olhos dela e disse:

- Já tô muito torta, ou ainda não?
- Não brinque com a palavra de Deus!
Sorri, dei uma piscadinha e falei:
- Não estou brincando.

Por incrível que pareça, a mulher se acalmou. Falou que é professora de ensino infantil, afastada por problemas na coluna. Estávamos conversando quando ouvimos um estouro. Tiro de 12, na opinião de um, pneu estourado, na do outro.

Quando finalmente o ônibus saiu, senti um alívio enorme. Ainda passamos na GEFRON, revistaram minhas malas de novo. Mas nada como sair de perto de San Matias, esquecer aquela vibração pesada e esquisita. Nunca mais quero pisar lá. Quando for à Bolívia, prefiro pegar carona numa nave vogon a ir por San Matias. Em todo caso, consegui manter a sanidade mental e seguir o lema dos mochileiros da galáxia: don’t panic!!!*

Siriema em cima do carro, fotografada ao lado da GEFRON, enquanto outros passageiros eram revistados.

Amigos me recomendaram ter cuidado para não entortar, já que ousei colocar a mão na Bíblia da mulher. Aviso que já nasci torta e, de acordo com os filósofos do Tchan, “pau que nasce torto nunca se endireita”. Por isso não tenho medo de tiazinhas histéricas com Bíblia na mão. Só tenho muito medo de San Matias...

*Referências ao livro "Guia dos mochileiros da galáxia", de Douglas Adams. Ver: Vogons, e também Não entre em pânico.

Viagem de Gabi - Cuyaba

1 Comentário:

almir disse...

Gabi, vc realmente tem coragem. E sua informação me serviu para eu ter mais caultela, pois estava querendo atravessar a fronteira de carro e colocar pneus novos na minha caminhonete na Bolívia, pois ouvi alguns amigos relatando que fizeram isso e pagaram muito mais barato pelo produto. Mas diante de sua narrativa, fiquei a pensar 1000 vezes, e decidi fazer isso aqui no Brasa mesmo!!! Valeu!

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