quinta-feira, 24 de março de 2011

As "lendas das águas"

Escrito por Humberto Mesquita / Neomondo - Ter, 22 de Março de 2011 17:38



... de norte a sul, de leste a oeste. Visitei e produzi programas do Monte Caburaí em Roraima ao Arroio Chuí no Rio Grande do Sul e da nascente do rio Moa no Acre até a Ponta do Seixas na Paraíba. Produzi e apresentei mais de cem programas “Isto é Brasil” e nesse espaço vi coisas e conheci muita gente. Entrevistei o caiçara e o caipira, o homem urbano e o suburbano, sertanejos e matutos e aprendi muito. O povo é sábio no seu dizer e sabe narrar com precisão os fatos verdadeiros ou as lendas que criou ao longo do tempo e que se eternizaram no saber popular.


Como esta edição de NEO MONDO é voltada para as águas, eu vou aqui localizar duas histórias cujos personagens da mitologia indígena vivem no fundo dos rios e se envolvem em situações com o homem comum das cidades.


Estava eu em São Félix do Araguaia fazendo entrevistas com pessoas que costumavam apanhar e vender tartarugas centenárias contribuindo também para a extinção desse réptil. Passava um pito em dois meninos que vendiam esses quelônios nas ruas de São Félix quando apareceu um homem de baixa estatura de nome Valdomiro, que fez questão de me dizer que ele deixou de utilizar essa prática quando quase foi mordido por uma Boiuna, uma cobra d’água, segundo ele, com mais de cinqüenta metros de comprimento. A par dos exageros quis saber o que aconteceu, e ele me convidou para conhecer uma área ribeirinha ao rio que leva o nome da cidade. E aí o senhor Valdomiro deitou falação: “Olhe aqui moço. Eu estava aqui na beira do rio para pegar tartarugas, mas de repente ouvi um barulho muito forte, e do meio do rio vindo em minha direção uma coisa que parecia ter nos olhos bola de fogo. Ela se enroscava toda e estava furiosa. Ela se enroscava e se transformava. Eu pensei primeiro que fosse um barco, mas depois que aquele bicho veio para a beira do rio eu saí correndo e só parei quando entrei na minha casa. Depois eu fiquei sabendo que era a Boiuna, uma cobra muito grande que devora animais e devora também as pessoas. Ela mora no fundo do rio, mas às vezes ela vem para terra para ter o que comer”.


A narrativa do senhor Valdomiro me levou a obter mais informações de outros moradores e também de figuras mais abalizadas que conhecem a história: a Boiuna seria uma cobra descomunal que vive no fundo dos grandes lagos e rios num lugar que é conhecido pelo povo como “Boiaçuquara” ou “Morada de cobra grande”. Seu corpo seria brilhante, emanando uma forte luz, e seus olhos brilham no escuro como se fossem archotes, iludindo pescadores incautos que são atraídos pelo perverso réptil. E quando a Boiuna resolve sair do rio e andar pela mata provoca no seu caminhar um som que lembra o tamborilar da chuva caindo. Conta a lenda que numa tribo indígena da Amazônia uma índia ficou grávida de um encantado da Boiuna e deu à luz duas crianças, sendo um menino que recebeu o nome de Honorato e uma menina com o nome de Maria. Para se livrar dos filhos, a mãe jogou as crianças num rio, e ali elas cresceram e passaram a viver. Honorato não fazia mal, mas sua irmã era perversa e atacava bichos e pessoas, levando Honorato a matá-la para resolver o problema.


Honorato, em noites de luar, deixava de ser cobra, saía do fundo do rio e se transformava em um belo e elegante rapaz. Ao amanhecer ele voltava para o rio. Para “quebrar seu encanto” e ele voltar a ser gente era preciso que alguém tivesse coragem de derramar leite na boca da enorme cobra e fazer um ferimento na sua cabeça até sair sangue. Um dia um soldado, a pedido de moças apaixonadas pelo Honorato, resolveu enfrentar a cobra e conseguiu libertar Honorato do terrível encanto.


Essas histórias são repassadas de pais para filhos e percorrem séculos nessas regiões do Norte do Brasil. O povo acredita na fidelidade dos fatos, e todo mundo se assombra e se preocupa com a presença da Boiuna.


A outra lenda eu vi contada em Belém do Pará. É a história do boto-cor-de-rosa. Um peixe que se transforma em homem para atrair moças em eventos juninos ou até mesmo em festas caseiras. Essa lenda faz parte da mitologia amazônica. É um peixe que tem o poder mágico de sair à noite do fundo dos rios e se transformar num homem, para seduzir as moças que se sentem atraídas por esse estranho ser.


A falta de dados mais concretos nos leva a crer que a lenda seja baseada em origem branca e mestiça com projeções nas culturas indígenas e ribeirinhas. A lenda do Boto é muito difundida na região Norte do Brasil, e está intimamente ligada aos folguedos que acontecem na região onde as moças se reúnem para conhecer novos parceiros de namoro. Nessas noites, geralmente de luar, o Boto aparece em forma de gente para conquistar corações despedaçados. E as moças com seus trajes atraentes se encantam com os galanteios projetados por este ser misterioso, gentil, afável e ao mesmo tempo estranho. As moças se encantam com a figura, mas ele escolhe com muita sutileza a sua presa que precisa ser bonita e ingênua. Ao primeiro descuido dos pais ele a leva para a beira do rio. E o amor se expande cheio de encanto e magia. Depois, o rapaz desaparece e não é mais visto nas redondezas, enquanto que a garota leva no ventre o produto de uma noite de encantamento. E nascerá, em nove meses, o filho do Boto ou na verdade o filho de um fanfarrão que se veste de Boto para seduzir a incauta donzela.


A verdade é que no Norte eu conheci muitos filhos de Boto e conheci até um poeta de nome Antonio Juraci Siqueira, que escreveu um poema ao Boto:


“Eu venho de um mundo
que tu não conheces
do onde, do quando
do nunca talvez
Eu venho de um rio perdido
Perdido em seus sonhos
Um rio insondável
Que corre em silencio
Entre o ser e o não ser
Sou filho das ondas
Que gemem na PRAIA
Sou feito de sombras
De luz, de luar.
E trago em meu rosto
Mandinga e mistério
E guardo em meus olhos
Funduras de um rio
Cuidado cabocla
Cuidado comigo
Que eu sou sempre tudo
Que anseias que eu seja
Teus ais, teus segredos
Tua febre e teu cio
Se em noites de lua
Sentires insônia
E a fome de sexo
Queimar tuas entranhas
A sede de beijos
Tua boca secar
E em brasa teu corpo
Meu corpo exigir
Contigo estarei
Na rede de encanto
Cativo, nas malhas
Da teia do amor”.

O Boto, produto dessa inspiração mitológica, é um cetáceo exclusivamente Aquático que habita rios do Norte brasileiro, principalmente a Amazônia. Tem uma cabeça grande, um bico dentado e corpo afilado, quase desprovido de pelos, com grandes nadadeiras na frente e duas mamas em posição posterior e uma cauda que termina na nadadeira longa e horizontal; tem também um sistema de sonar sofisticado que se localiza na cabeça, de onde emite ondas sonoras. Pesa 7 quilos quando nasce e 150 quilos quando adulto.
O Boto no Norte do Brasil é símbolo de sedução e energia, porque seus órgãos sexuais se assemelham aos dos humanos. O Boto está em extinção por culpa do homem que tenta buscar nele dotes mágicos e usa seus atributos para fabricação de remédios, amuletos e rituais.
Mamiraná, que fica a 530 quilômetros de Manaus, é o lugar com a maior concentração de boto-cor-de-rosa, e a cada ano se registra uma queda de 10% na população desses animais. Isso se deve também à construção de hidrelétricas na Bacia do Amazonas que isolam esses mamíferos dificultando a reprodução. Os botos existem há mais de 5 milhões de anos e chegaram ao rio Amazonas nadando pelo oceano Atlântico.

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