O liberalismo self-service e a crise econômica
*Por Leonardo Sakamoto
A General Motors demitiu 744 trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos (SP) sob a justificativa de “diminuição da atividade industrial”. Mesmo após ter recebido apoio dos governos da União e do Estado de São Paulo no sentido de facilitar a compra de seus produtos por consumidores. O setor também é beneficiário de recursos oriundos de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, pertencente aos trabalhadores.
Colunistas de economia têm dito e escrito que o Ministério do Trabalho e Emprego e sindicatos fazem uma chiadeira irracional, pedindo contrapartidas à cessão de linhas de crédito ou corte de impostos. Atestam que empresas não podem operar esquecendo que estão inseridas em uma economia de mercado, buscando a taxa de lucro média para continuar sendo viável. Em outras palavras, defendem que não dá para esperar que o capital seja dilapidado da mesma forma que o trabalho em uma crise.
Essa “regra do jogo” me faz lembrar um restaurante self-service. Você passa com a bandeja e escolhe o que quer e o que não quer para o almoço. O que é bom coloca no prato, o que é ruim fica para a massa se servir depois. Traduzindo: o Estado tem que garantir e ajudar o funcionamento das empresas, mas as empresas não podem sofrer nenhuma forma de intervenção em seu negócio. Um liberalismo de brincadeirinha, com um Estado atuante, mas subserviente do poder econômico, em que o (nosso) dinheiro público deve entrar calado para financiar os erros alheios. Privatizam-se lucros, estatizam-se prejuízos.
O setor automobilístico lucrou muito nos últimos anos no país. O que, é claro, se traduz em empregos, geração de renda, impostos e tudo o mais. Ninguém quer o fechamento de fábricas e soluções devem ser discutidas e negociadas, mas sempre respeitando o patamar mínimo legal. É interessante como diretores de federações e economistas ligados a empresas defendem a redução salarial com manutenção de jornada durante a crise e se arrepiam quando sindicatos e parlamentares propõem a diminuição de jornada com manutenção salarial.
(É claro que os bancos continuam fazendo a festa, recebendo facilidades, mas alegando “falta de confiança” para avançar na disponibilização de crédito à produção, ao comércio e ao consumidor. Nós podemos confiamos a eles uma parte estratégica da economia nacional com uma série de benefícios, mas eles não precisam tornar essa “confiança” mútua. Como possuem um representante sentado no posto de comando do Banco Central, os juros não vão baixar na medida necessária, nem outra ação vai ser tomada para forçar a redução do custo do dinheiro. Eles mandam, nós obedecemos.)
O governo tem a obrigação sim de exigir contrapartidas de quem vai receber recursos ou benefícios devido à crise econômica – aliás, este é o momento ideal para isso. Quando as empresas estiverem surfando novamente, após este ciclo recessivo mundial passar, vai ser mais difícil colocar cartas na mesa como agora. Isso aconteceu em setores do agronegócio nacional, como vimos nos últimos anos. Uma política de emprego para a crise que não seja pautada pela redução de direitos, aumento da terceirização ilegal e corte de postos de trabalho é um exemplo disso.
Li depoimentos de montadoras dizendo que os trabalhadores têm que entender que esta é uma crise global e muitas de suas sedes estão passando sérias dificuldades, correndo o risco, inclusive de fechar. O que é mais um caso self-service. Lembro um caso que pode ser ilustrativo: um dia, matrizes de determinadas empresas automobilísticas foram questionadas sobre o porquê de não atuar de forma mais incisiva para evitar que suas subsidiárias em países como o Brasil estejam inseridas em cadeias produtivas em que há trabalho escravo ou crimes ambientais. Como resposta, elas disseram que há independência entre as ações da matriz e das subsidiárias e que as matrizes não podem interferir, apenas pedir que atuem de acordo com a legislação. Ótimo! Então, elas não vão se incomodar se o Brasil regular o envio de remessas de lucros para o exterior, que atingiu patamares recordes em 2008. Esses recursos poderiam ser utilizados para ajudar a passar a tempestade de forma mais suave. Já que elas não se incomodam com a qualidade de vida do trabalhador por aqui, por que se incomodar com o resultado dos lucros desse trabalho, não é mesmo?
Outro ponto que deveria ser cobrado como contrapartida é a redução dos salários de executivos sempre que houver qualquer prejuízo ao salário da massa trabalhadora. Que tal propor também a eles redução de salário sem redução de jornada? Ou propor que fiquem em casa alguns meses, vivendo do teto do seguro-desemprego, até que a situação melhore? Até nos Estados Unidos, berço da crise, parlamentares têm exigido como condição para conceder empréstimos públicos que as empresas dêem transparência sobre os ganhos de altos executivos de grandes empresas. Por que não adotamos aqui também?
* Leonardo Sakamoto
Leonardo Sakamoto é jornalista e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu a guerra pela independência em Timor Leste e a guerra civil angolana. Foi professor do curso de jornalismo da ECA-USP e trabalhou em vários veículos de comunicação, tendo recebido prêmios na área de jornalismo e direitos humanos, como o Vladimir Herzog e o Prêmio Combate ao Trabalho Escravo. Empreendedor social Ashoka, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

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