domingo, 8 de março de 2009

Cinema na Laje

Com lua, lanterninha e jabá com mandioca, Sérgio Vaz e a Cooperifa inauguraram cinema de graça na periferia de São Paulo

Editado por Kassu - 08/03/2009 às 20h03
AGUA BOA NEWS

Por Eliane Brum / Época


Mais de cem pessoas, de todos os pontos da periferia de São Paulo,
participaram da estréia do Cinema na Laje

Piauí estava lá, tocando uma obra na Piraporinha, Zona Sul de São Paulo, como fez a vida toda. Segunda-feira, 2 de março, o solzão fervia as lajes da periferia e a cabeça branca do pedreiro. De repente, Zé Batidão, todo rapidinho, todo mineiro, apareceu com proposta das mais esquisitas. “Quer trabalhar no cinema?” Piauí se aprumou, pensou um pouco: “Como é o cargo?” Foi assim que horas mais tarde ele estava lindo. Todo esticado de uniforme vermelho, galões dourados nos ombros, botões brilhantes. “Mais bonito que isso só quando fui padrinho de casamento”, constatou. E exibiu a lanterna moderna, sem pilhas, bem chique.

Francisco Rodrigues Alves, 52 anos, “mas para os meus conhecimentos Piauí”, foi promovido à lanterninha do “Cinema na Laje”, a mais nova invenção do poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa. Vaz é assim: em vez de dormir, fica tendo ideias na madrugada. Por causa da insônia criativa, criou um monte de confusão: tomou conta de uma fábrica interditada, em 2001, para fazer uma mostra cultural; inventou o maior sarau de poesias do Brasil; uma vez por ano convida poetas e não-poetas para soltar pipas com poemas durante a noite; e, para comemorar o dia internacional da mulher, na próxima quarta-feira vai mandar todo homem santo do sarau arrastar os joelhos no chão para pedir perdão às patroas, num evento concorridíssimo chamado “Ajoelhaço”.

O poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa e do Cinema na Laje

A última façanha de Sérgio Vaz é o cinema. Ele acordou pensando que se não tinha cinema na periferia, era hora de inventar um. “Só retratam a periferia nos filmes pela violência”, diz. “Se a gente quiser ver filmes que nos retratam decentemente temos de ir a cinemas como o Unibanco, que a gente não tem dinheiro para pagar. Então, vamos abrir a tela para a produção de documentários aqui da periferia, que mostram que a gente também dá beijo na boca.”

A periferia ganhou cinema, ao ar livre e de graça, toda primeira e terceira segunda-feira de cada mês. Como Sérgio Vaz não queria uma “sala de cinema, mas um CINEMA”, planejou tudo nos conformes. Nessa deixa entrou o lanterninha Piauí, estreando reluzente na profissão.
Local era bem fácil. Há muito Zé Batidão aderiu às loucuras geniais de Sérgio Vaz. Seu boteco, numa esquina de quebrada na Zona Sul de São Paulo, é a sede da Cooperifa há anos. E o Zé literalmente veste a camisa e aproveita para vender muita cerveja. É um empreendedor. Cozinheiro com as duas mãos cheias, logo anteviu a possibilidade de abrilhantar a festa com uma criação de cinegastronomia.

Zé Batidão e a sua criação especial para a inauguração do cinema: o "costelaje" (costela de porco, angu, queijo mineiro e couve)

Como dieta é um assunto alienígena na Cooperifa, Zé nunca mede calorias. Gosta de usar todas elas. E foi exatamente o que fez ao criar um prato com base de costelinha de porco, coberta por angu, recoberto por queijo mineiro e, como ele explica, “umas couves rasgadas ao redor”. Só uma palavra: sensacional. Segundo o Zé, “o Costelaje é light”.

Nunca houve mesmo um cinema como esse. Na laje, em noite de luar, até tinha pipoca. Mas só para o aquecimento. A coisa ali era um pouco mais consistente: Costelaje, Escondidinho, jabá com mandioca. E, claro, cerveja e cigarro à vontade. “No Rio o pessoal toma sol na laje”, provocava Paco, o homem que entrou com a tela, o som, a infra. “Aqui em São Paulo a gente faz cinema.” Há muito ele acredita na TV e no cinema de rua, bancando do próprio bolso nunca muito cheio. “A gente não tem direito à mídia, então tem de fazer filmes e programas em que a gente seja o astro”, esclarece.

Ao ser intimado a dar sua contribuição, o artista-plástico Broi rumou para uma loja da Fnac, onde gastou algumas horas folheando livros de cinema. Aí, bateu na porta da costureira Inês – “sobrenome? Não, é só Inês mesmo” – com o desenho na cabeça. E a boa Inês fez um uniforme de lanterninha nos trinques. “Parece um príncipe!”, encantava-se Broi, diante da exuberância do pequeno Piauí.

O primeiro filme era sobre eles mesmos. Viveram a experiência que Angelina Jolie poderia ter, caso assistisse aos próprios filmes, ao se reconhecer na tela. “Povo lindo, povo inteligente” é um documentário sobre a Cooperifa produzido pela DGT filmes, com direção de Sérgio Gagliardi e Mauricio Falcão. Ali, na laje, eles viviam esse milagre de ser, ao mesmo tempo platéia e atores principais.

O documentário seguinte – sim, porque o “Cinema Laje” estreou com sessão dupla, como nos velhos tempos – era “A Ponte”, de Roberto T. Oliveira e João Wainer. Na tela, experiências extraordinárias vividas na periferia, como a de Dagmar Garroux, a Tia Dag, criadora da Casa do Zezinho, um espaço de educação integral e reinvenção do mundo.

O pedreiro Piauí foi promovido a lanterninha

Para a epifania de quem já não suporta mais a falta de educação nos cinemas dos shoppings, quando algum incauto se aventurava a cochichar no meio do filme, o “shhhhhhhhhh” era tão definitivo, alto e politicamente incorreto que a boca se fechava imediatamente. Celular, ninguém era doido.

Barulho, só na apresentação e ao final da sessão. Aí, nada de aplauso de dondoca, com as palmas das mãos farfalhando. Aplauso, na Cooperifa, tem de doer. E quando Sérgio Vaz achou que estava fraco, berrou bem invocado: “Estão pensando que tão em Cannes?” A laje (quase) veio abaixo.

Gratuito, o cinema vai exibir documentários, a maioria deles produzido na periferia,
toda primeira e terceira segunda-feira do mês

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