segunda-feira, 11 de julho de 2011

Guma, o agrônomo que lutou ao lado Chico Mendes

MONTEZUMA CRUZ / Ag.Amazônia

Recém-formado e com vontade de trabalhar, aceitou o convite de um colega que ia para o Acre, com trabalho garantido. Gomercindo atua hoje na advocacia.

Ativista estudantil e ambiental nascido em Caracol, na fronteira brasileira com o Paraguai, Gomercindo Rodrigues, o Guma, 52 anos, é advogado há 13. No dia seis de abril de 1983, formado em Agronomia, desembarcou em Rio Branco (AC), na Amazônia Ocidental. Trabalhou na Colonacre, na Emater, deixou o governo estadual por discordâncias de atuação e virou agricultor por seis meses num projeto do Incra. Contraiu duas malárias.
Conheceu o líder seringueiro Chico Mendes, de quem se tornou um dos mais fortes aliados e com quem esteve até os minutos que antecederam o seu assassinato, ao anoitecer de 22 de dezembro de 1988. “Ele foi meu grande mestre: ensinou-me a resolver situações complexas de forma simples, na linguagem dos seringueiros”, disse.
Durante a ditadura militar, Guma participou de cinco greves. até que o Centro Acadêmico de Agronomia conseguiu a área de 90 hectares onde está localizada a Universidade Federal da Grande Dourados. Com a criação do Diretório Central dos Estudantes da UFMS, do qual foi o primeiro presidente, tomou parte no movimento pelas Diretas já em Mato Grosso do Sul.
Recém-formado e com vontade de trabalhar, aceitou o convite de um colega que ia para o Acre, com trabalho garantido.
“O que eu aprendi com os seringueiros sobre meio ambiente, ecologia e direitos, não aprenderia em nenhuma universidade do mundo. Também tenho essa gostosa ‘dívida’ para com meus amigos e amigas da floresta”.
Cidadão acreano, no ato dos 20 anos do assassinato do líder ecologista, em 2008, ele recebeu o Prêmio Chico Mendes de Florestania, por ter relação com a luta dos trabalhadores rurais no Acre. Seu livro “Caminhando na Floresta” foi traduzido para o inglês e lançado nos Estados Unidos e Canadá, Editora da Universidade do Texas, com o título: “Walking the Forest with Chico Mendes: struggle for Justice in the Amazon”. 
De Rio Branco (AC), decorridos 22 anos da morte de Chico Mendes, falta sobre seu trabalho na Amazônia: 
Qual a sua cidade natal, quem são seus pais e onde estudou? 
Gomercindo – Meus pais são Asturio Rodrigues e Lucila Garcia Rodrigues, que moram desde 1968 em Bonito. Eu nasci em Caracol, mas me criei em Bonito até a adolescência. Saí para cursar o Ensino Médio no Seminário Salesiano Lagoa da Cruz, em Campo Grande. Entrei na 1ª turma de Agronomia da UFMS em 1978 e saí na 2ª, em 1982. No Acre cursei Direito na Universidade Federal; entrei 1992 e me formei em 1997. 

Que lembranças têm dos seus tempos universitários?
Não havia quase nada, só professores para os cursos de licenciatura do então Centro Universitário de Dourados, um dos campi da UFMS. Lutamos para estruturar o curso. De 1978 a 1982 tivemos cinco greves, no final da ditadura militar, e fazer greve era sempre muito arriscado. Com elas conseguimos a área de 90 hectares onde se localiza a Universidade Federal da Grande Dourados. Chegaram professores com pós-graduação, laboratórios e biblioteca. O Curso de Agronomia de Dourados é um dos mais respeitados do País. 
Dourados tinha mais condições de instalar o curso?
Foi assim: a cada ano um grupo de 32 alunos lutava para estruturar o curso. Dourados e Campo Grande tinham uma briga política e ele saiu para Dourados porque no período da sua criação ainda funcionava a Universidade Estadual do Mato Grosso. Quem mandava era o governador, que nomeava o reitor. Como ele (José Garcia Neto) estava “queimado” em Campo Grande, resolveu “ficar bem” com Dourados, o 2º colégio eleitoral do sul do então Mato Grosso uno. E decidiu por Dourados, a maior região de produção agrícola. 
Houve reação às greves?
No começo, a população e a imprensa de Dourados ficavam contra a gente. Pensavam que queríamos “deslocar” o curso para Campo Grande. E não era isso! Queríamos estruturá-lo em Dourados. Levou uns dois anos para que a situação fosse entendida. Numa das greves conseguimos a doação de 50 ha de terras do então vereador Celso Amaral, o que forçou o então prefeito José Elias Moreira a cumprir a promessa de doar 40 ha, ou seja, em vez de 40 ganhamos 90. 
O senhor se posicionou contra as usinas de álcool no Pantanal?
Fui o primeiro vice-presidente geral do DCE. A UFMS tinha vários campi, cada um com um vice-presidente que, na ausência do presidente, representava a entidade. Mas havia um vice-presidente geral. Fiz parte da gestão “Raízes”, presidida pelo hoje engenheiro e empresário Semy Ferraz (N.R.: ex-deputado  estadual em MS, ex-secretário de Obras, ex-presidente da Sanesul e até fevereiro desse ano, presidente do Serviço Autônomo de Água e Esgotos em Rio Branco). Ajudei a mobilizar os estudantes de agronomia de todo o Centro-Oeste para manifestações contra as usinas de álcool, mas elas acabaram não acontecendo. A Assembléia Legislativa proibiu esse tipo de indústria no Pantanal e na região das nascentes dos rios caudatários do rio Paraguai.
Como os seus amigos encararam sua opção de ir para Amazônia?
Quando vim para o Acre, eles sabiam que eu procurava trabalhar no que me formara. Nas lutas do Curso de Agronomia criamos o Centro Acadêmico de Agronomia quando era proibido criar centros acadêmicos. Depois, numa discussão que envolveu todos os campi, criamos também o Diretório Central de Estudantes. A gente engatinhava a luta pela redemocratização do País, que desembocou no movimento Diretas já.
 
Como foi a sua chegada ao PT?
Eu participei do congresso de refundação da UNE em Salvador e fui um dos fundadores do PT em Dourados. Saí candidato a deputado federal em 1982, o que explica a minha vinda para o Acre. Alguns colegas de turma se empregaram no Governo de Mato Grosso do Sul. Era apenas a 2ª turma e havia enorme carência desses profissionais. Como tinha sido candidato numa eleição ganha pelo PMDB de Wilson Martins, não consegui emprego. Recém-formado e com vontade de trabalhar, aceitei o convite de um colega que vinha para cá com trabalho arranjado. Tentei a sorte no dia seis de abril de 1983, quatro meses após colar grau.
Onde foi seu primeiro emprego no Acre?
Trabalhei na Colonacre por cerca de dois anos, depois na Emater-AC. Saí por problemas políticos: o governo queria que eu fosse funcionário do Estado, eu me comportava como servidor público. Quando os assentados do Projeto Redenção (depois, município de Acrelândia) faziam reivindicações, eu respaldava. Embora novato, me manifestei contra a troca de direção da Colonacre, porque o então presidente se negava a demitir pessoas vindas do governo anterior, para acomodar pessoas da Tendência Popular do PMDB, formada principalmente pelo PC do B. Fui “encostado”.
Como é que o senhor virou agricultor?
Passei em 1º lugar para agrônomo da Emater em janeiro de 1985. Ocorre que o governo era o mesmo. As pressões políticas continuaram para que eu não fosse trabalhar em campo. Fiquei três meses e pedi demissão. Comprei um lote de terras no Projeto de Assentamento Dirigido Pedro Peixoto, do Incra, no município de Plácido de Castro. Fui morar lá dentro, onde os políticos não me queriam ver trabalhando como agrônomo. Em seis meses peguei duas malárias, mas apoiei muito a luta dos companheiros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Fiz primeiros contatos com Chico Mendes. Na presidência, ele convocou o 1º Encontro Nacional de Seringueiros, em Brasília (10 a 17 de outubro de 1985). Nessa época eu ainda morava em Plácido de Castro. Quando cheguei a Xapuri, em janeiro de 1986, o sindicato já era uma referência.
E antes de Chico havia o Wilson Pinheiro...
Sim, ele foi o primeiro grande líder dos trabalhadores rurais. Wilson morreu assassinado em 21 de julho de 1980. Nessa época eu ainda estudava Agronomia em Dourados. Ele comandou os primeiros “empates” (*) e a organização do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, da qual inicialmente o Chico fez parte. O sindicato de Xapuri só foi fundado em 1977; o de Brasiléia, em 1975, representava os trabalhadores de toda a região do Alto Acre.
Aí cresceu o movimento contra o desmatamento?
O assassinato de Wilson Pinheiro em 1980 foi um duro golpe. A partir de 1983, depois de deixar o mandato de vereador em Xapuri, Chico assumiu a presidência do sindicato, puxando para a cidade a organização da resistência contra os desmatamentos e a expulsão dos seringueiros. Xapuri passou a ser referência de organização sindical, tanto que convocou o 1º Encontro Nacional de Seringueiros, do qual resultou a criação do Conselho Nacional e, principalmente, o lançamento da proposta da criação das reservas extrativistas genuinamente dos seringueiros, hoje aplicável a qualquer região com populações tradicionais que façam uso dos recursos naturais sem devastação. 

Como é que o senhor se tornou amigo de Chico Mendes?
Conheci o Chico quando eu ainda morava em Plácido de Castro. Ele era o presidente da CUT e acompanhava os acampamentos dos assentados. Em janeiro de 1986 eu estava desempregado. Participei de uma reunião de avaliação do Projeto Seringueiro, que reunia escolas para alfabetização de adultos e criação de pequenas cooperativas. As escolas vão até hoje de vento em popa, mas as cooperativas não funcionavam. Chamaram-me para ajudar. Sendo alguém “de fora”, eu notaria o porquê de a experiência não estar dando certo. 
E aí nasceu a cooperativa?
Eu propus diagnóstico mais aprofundado, comparando seringais onde houve a experiência das cooperativas com os demais. Mary Alegretti conseguiu um projeto e fizemos o trabalho de diagnóstico. Foi tão grande que nunca conseguimos tabular completamente. Isso me fez reafirmar a posição inicial: o erro não era a idéia, mas a metodologia empregada. Propus ao Chico construir com os seringueiros a idéia e só depois passar à criação da cooperativa. Ele topou. 
Contam que o senhor andava a pé?
Às vezes eu caminhava mesmo! Dezoito horas, dois dias para fazer uma reunião com seis, oito, dez seringueiros. Eu funcionava como o “problematizador”. Esse trabalho levou mais de um ano, de abril de 1987 a 30 de junho de 1988, quando finalmente foi fundada a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri Ltda (CAEX), que está funcionando até hoje, não sem dificuldades, claro! Nasceu da dedicação ao trabalho de campo. 
Chico, a essa altura, estava famoso no mundo?...
Ele se tornava referência nacional e mundial pela proposta das reservas extrativistas como modelo de desenvolvimento para a Amazônia. Reconhecia o meu trabalho e foi meu grande mestre para me ajudar a discutir uma questão complexa de forma simples, na linguagem dos seringueiros. Sabia que podia confiar em mim para qualquer coisa. Eu não ficava só no trabalho técnico, participava dos “empates” e corria os mesmos riscos enfrentados por ele e outros companheiros. Fazíamos parte da mesma lista de pessoas “marcadas para morrer”. 
Acredita que se tivessem levado Chico do Acre, ele se livraria do atentado que lhe tirou a vida?
Acredito. Mas o próprio Chico não queria isso. Ele achava que não valeria a pena viver se não pudesse estar na luta diária, correndo os mesmos riscos. Até previu, em entrevista a Edilson Martins (Jornal do Brasil, edição de 11/12/88) que voltaria ao Acre para ser assassinado. Deu nome de seus possíveis assassinos e disse: “Se descesse um anjo dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a pena, mas ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero viver!”. De mais a mais, a maioria achava que os pistoleiros e fazendeiros que pensavam a “empreitada” não seriam loucos de matá-lo. Nós víamos os pistoleiros todos os dias, durante mais de seis meses, em Xapuri, armados, ostensivos e, de repente, eles sumiram... 
No seu livro o senhor fala que sentiu a “presença da morte” em 1988. Como seria essa situação, se ocorresse nestes anos 2000?
Primeiro, acho que hoje não há mais clima no Acre para a presença ostensiva dos pistoleiros, como naquela época; são outros tempos. O próprio assassinato do Chico mudou a realidade, isso, sem contar a punição de Darly e Darci Alves (pai e filho). Darly já respondera a outros processos por homicídio. A família parece ter uma história sangrenta desde os anos 1950 do século passado, na região de Ipanema, Pocrane (MG). Fugiram para Nova Jerusalém, distrito de Umuarama (PR) e de lá para o Acre, no início dos anos 1970, depois de acusados do assassinato de Acir Urizzi. Por esse crime Darly só foi condenado após a morte do Chico. Segundo, a sensação, com certeza não é boa: naqueles momentos, o que eu sentia é que, se fosse para morrer, morreria em pé, sem correr. Nunca senti medo de morrer. Sabia que, se acontecesse, era parte da luta. 
Sente alguma frustração depois disso tudo?
A maior frustração foi, sem dúvida, ter visto como o Estado (a União e o Acre) foi incompetente para evitar o assassinato do Chico, a morte mais anunciada que tivemos por aqui, mas que não foi tratada com o devido cuidado por quem de direito. Se o Chico fosse vivo, as conquistas seriam, sem dúvida, bem maiores. 
Como foi a sua opção por fazer o Curso de Direito?
Lá pelos idos de 1992, conversando em frente ao sindicato, vários companheiros comentavam que a gente estava sempre precisando de advogado e que nunca tinha algum para defendê-los, inclusive quando eram presos pelos “empates” ou contra a expulsão de suas colocações. Diziam, ainda, que até que o filho de um deles conseguisse chegar à Universidade, talvez já não existissem mais direitos a serem defendidos. Eu falei: pra mim é só fazer outro vestibular! E eles: você faria isso? Eu disse: claro, por que não? Ali ficou decidida a minha inscrição no vestibular de Direito da UFAC em 1993. Havia parado de estudar dez anos antes e corria o risco de não passar. Passei e já pude atuar em processos importantes para os trabalhadores rurais, conheci outros lugares, construí uma alternativa econômica, acreditei que é possível desenvolver sem destruir. O que eu aprendi com os seringueiros sobre meio ambiente, ecologia e direitos, não aprenderia em nenhuma universidade do mundo. Também tenho essa gostosa “dívida” para com meus amigos e amigas da floresta. 

É possível conciliar a pecuária de corte com o extrativismo?
Com grande preocupação.Uma coisa é o seringueiro ter duas, três cabeças de gado que funcionam como uma “poupança” para momentos de necessidade; outra é ter 20, 50, 100 cabeças. Aí a pressão sobre a floresta já é muito grande: a presença do gado leva os seringueiros a deixar de lado uma de suas práticas mais fundamentais para evitar a devastação, que é a rotação de capoeiras, ou seja, o seringueiro faz seu pequeno desmatamento de 1,5 ha por ano, usa essa área por dois anos, depois a abandona e deixa formar capoeira para, seis, sete anos, depois volta a utilizá-la. Isso evita o desmatamento de novas áreas. Mas se quer criar gado, em vez de deixar formar a capoeira, ele planta pasto; aí, todo ano ele tem de desmatar. É impossível conciliar gado com reserva extrativista, a menos que seja, como já disse, poucas cabeças, como “reserva financeira”, para vender ao açougueiro, em caso de necessidade. Em alguns casos, o gado que está na reserva nem é do seringueiro; é do fazendeiro que arrenda o pasto. Aí, a devastação será ainda maior, sem quase nenhum retorno para o seringueiro. 
Por que a Reserva Extrativista deu visibilidade aos seringueiros da Amazônia?
Até o lançamento dessa idéia no 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, os ambientalistas do Brasil e do mundo tinham um só discurso: “é preciso preservar a Amazônia”, mas nenhuma proposta, nenhum projeto. Normalmente, eles entendem o homem como um “ser predador” que precisa ser removido para a conservação ambiental. Já o governo federal tinha o projeto de “integrar a Amazônia” com grandes rodovias e torná-la uma “região produtiva”. Esse, aliás, é um modelo devastador. Quando os seringueiros fizeram uma proposta de usar a floresta, mantê-la produtiva, sem destruí-la, os ambientalistas adotaram um modelo de desenvolvimento para a região. Assim, quando o governo defendia a necessidade de “desenvolver a Amazônia”, rapidamente eles podiam responder: “Nós concordamos com a reserva extrativista, como querem os seringueiros”. Ou seja, havia a possibilidade de dois modelos: um predatório, facilitando a criação de gado, outro conservacionista, baseado no uso dos recursos naturais – látex, castanha, fibras, plantas medicinais, resinas, corantes etc –, com exploração pelas próprias populações tradicionais, portanto, sem devastação.

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