Guma, o agrônomo que lutou ao lado Chico Mendes
MONTEZUMA CRUZ / Ag.Amazônia
Recém-formado  e com vontade de trabalhar, aceitou o convite de um colega que ia para o  Acre, com trabalho garantido. Gomercindo atua hoje na advocacia. 
Ativista estudantil e ambiental nascido em Caracol, na fronteira brasileira com o Paraguai, Gomercindo Rodrigues, o Guma,  52 anos, é advogado há 13. No dia seis de abril de 1983, formado em  Agronomia, desembarcou em Rio Branco (AC), na Amazônia Ocidental.  Trabalhou na Colonacre, na Emater, deixou o governo estadual por  discordâncias de atuação e virou agricultor por seis meses num projeto  do Incra. Contraiu duas malárias.
Conheceu o  líder seringueiro Chico Mendes, de quem se tornou um dos mais fortes  aliados e com quem esteve até os minutos que antecederam o seu  assassinato, ao anoitecer de 22 de dezembro de 1988. “Ele foi meu grande  mestre: ensinou-me a resolver situações complexas de forma simples, na  linguagem dos seringueiros”, disse.
Durante a ditadura militar, Guma  participou de cinco greves. até que o Centro Acadêmico de Agronomia  conseguiu a área de 90 hectares onde está localizada a Universidade  Federal da Grande Dourados. Com a criação do Diretório Central dos  Estudantes da UFMS, do qual foi o primeiro presidente, tomou parte no  movimento pelas Diretas já em Mato Grosso do Sul.
Recém-formado e com vontade de trabalhar, aceitou o convite de um colega que ia para o Acre, com trabalho garantido.
“O que eu  aprendi com os seringueiros sobre meio ambiente, ecologia e direitos,  não aprenderia em nenhuma universidade do mundo. Também tenho essa  gostosa ‘dívida’ para com meus amigos e amigas da floresta”.
Cidadão  acreano, no ato dos 20 anos do assassinato do líder ecologista, em 2008,  ele recebeu o Prêmio Chico Mendes de Florestania, por ter relação com a  luta dos trabalhadores rurais no Acre. Seu livro “Caminhando na  Floresta” foi traduzido para o inglês e lançado nos Estados Unidos e  Canadá, Editora da Universidade do Texas, com o título: “Walking the  Forest with Chico Mendes: struggle for Justice in the Amazon”. 
De Rio Branco (AC), decorridos 22 anos da morte de Chico Mendes, falta sobre seu trabalho na Amazônia: 
Qual a sua cidade natal, quem são seus pais e onde estudou? 
Gomercindo – Meus  pais são Asturio Rodrigues e Lucila Garcia Rodrigues, que moram desde  1968 em Bonito. Eu nasci em Caracol, mas me criei em Bonito até a  adolescência. Saí para cursar o Ensino Médio no Seminário Salesiano  Lagoa da Cruz, em Campo Grande. Entrei na 1ª turma de Agronomia da UFMS  em 1978 e saí na 2ª, em 1982. No Acre cursei Direito na Universidade  Federal; entrei 1992 e me formei em 1997. 
Que lembranças têm dos seus tempos universitários?
Não havia  quase nada, só professores para os cursos de licenciatura do então  Centro Universitário de Dourados, um dos campi da UFMS. Lutamos para  estruturar o curso. De 1978 a 1982 tivemos cinco greves, no final da  ditadura militar, e fazer greve era sempre muito arriscado. Com elas  conseguimos a área de 90 hectares onde se localiza a Universidade  Federal da Grande Dourados. Chegaram professores com pós-graduação,  laboratórios e biblioteca. O Curso de Agronomia de Dourados é um dos  mais respeitados do País. 
Dourados tinha mais condições de instalar o curso?
Foi  assim: a cada ano um grupo de 32 alunos lutava para estruturar o curso.  Dourados e Campo Grande tinham uma briga política e ele saiu para  Dourados porque no período da sua criação ainda funcionava a  Universidade Estadual do Mato Grosso. Quem mandava era o governador, que  nomeava o reitor. Como ele (José Garcia Neto) estava “queimado” em  Campo Grande, resolveu “ficar bem” com Dourados, o 2º colégio eleitoral  do sul do então Mato Grosso uno. E decidiu por Dourados, a maior região  de produção agrícola. 
Houve reação às greves?
No  começo, a população e a imprensa de Dourados ficavam contra a gente.  Pensavam que queríamos “deslocar” o curso para Campo Grande. E não era  isso! Queríamos estruturá-lo em Dourados. Levou uns dois anos para que a  situação fosse entendida. Numa das greves conseguimos a doação de 50 ha  de terras do então vereador Celso Amaral, o que forçou o então prefeito  José Elias Moreira a cumprir a promessa de doar 40 ha, ou seja, em vez  de 40 ganhamos 90. 
O senhor se posicionou contra as usinas de álcool no Pantanal?
Fui o  primeiro vice-presidente geral do DCE. A UFMS tinha vários campi, cada  um com um vice-presidente que, na ausência do presidente, representava a  entidade. Mas havia um vice-presidente geral. Fiz parte da gestão  “Raízes”, presidida pelo hoje engenheiro e empresário Semy Ferraz (N.R.:  ex-deputado  estadual em MS, ex-secretário de Obras, ex-presidente da  Sanesul e até fevereiro desse ano, presidente do Serviço Autônomo de  Água e Esgotos em Rio Branco). Ajudei a mobilizar os estudantes de  agronomia de todo o Centro-Oeste para manifestações contra as usinas de  álcool, mas elas acabaram não acontecendo. A Assembléia Legislativa  proibiu esse tipo de indústria no Pantanal e na região das nascentes dos  rios caudatários do rio Paraguai.
Como os seus amigos encararam sua opção de ir para Amazônia?
Quando  vim para o Acre, eles sabiam que eu procurava trabalhar no que me  formara. Nas lutas do Curso de Agronomia criamos o Centro Acadêmico de  Agronomia quando era proibido criar centros acadêmicos. Depois, numa  discussão que envolveu todos os campi, criamos também o Diretório  Central de Estudantes. A gente engatinhava a luta pela redemocratização  do País, que desembocou no movimento Diretas já.
 
Como foi a sua chegada ao PT?
Como foi a sua chegada ao PT?
Eu  participei do congresso de refundação da UNE em Salvador e fui um dos  fundadores do PT em Dourados. Saí candidato a deputado federal em 1982, o  que explica a minha vinda para o Acre. Alguns colegas de turma se  empregaram no Governo de Mato Grosso do Sul. Era apenas a 2ª turma e  havia enorme carência desses profissionais. Como tinha sido candidato  numa eleição ganha pelo PMDB de Wilson Martins, não consegui emprego.  Recém-formado e com vontade de trabalhar, aceitei o convite de um colega  que vinha para cá com trabalho arranjado. Tentei a sorte no dia seis de  abril de 1983, quatro meses após colar grau.
Onde foi seu primeiro emprego no Acre?
Trabalhei  na Colonacre por cerca de dois anos, depois na Emater-AC. Saí por  problemas políticos: o governo queria que eu fosse funcionário do  Estado, eu me comportava como servidor público. Quando os assentados do  Projeto Redenção (depois, município de Acrelândia) faziam  reivindicações, eu respaldava. Embora novato, me manifestei contra a  troca de direção da Colonacre, porque o então presidente se negava a  demitir pessoas vindas do governo anterior, para acomodar pessoas da  Tendência Popular do PMDB, formada principalmente pelo PC do B. Fui  “encostado”.
Como é que o senhor virou agricultor?
Passei em  1º lugar para agrônomo da Emater em janeiro de 1985. Ocorre que o  governo era o mesmo. As pressões políticas continuaram para que eu não  fosse trabalhar em campo. Fiquei três meses e pedi demissão. Comprei um  lote de terras no Projeto de Assentamento Dirigido Pedro Peixoto, do  Incra, no município de Plácido de Castro. Fui morar lá dentro, onde os  políticos não me queriam ver trabalhando como agrônomo. Em seis meses  peguei duas malárias, mas apoiei muito a luta dos companheiros do  Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Fiz primeiros contatos com Chico  Mendes. Na presidência, ele convocou o 1º Encontro Nacional de  Seringueiros, em Brasília (10 a 17 de outubro de 1985). Nessa época eu  ainda morava em Plácido de Castro. Quando cheguei a Xapuri, em janeiro  de 1986, o sindicato já era uma referência.
E antes de Chico havia o Wilson Pinheiro...
Sim, ele  foi o primeiro grande líder dos trabalhadores rurais. Wilson morreu  assassinado em 21 de julho de 1980. Nessa época eu ainda estudava  Agronomia em Dourados. Ele comandou os primeiros “empates” (*) e a  organização do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, da qual  inicialmente o Chico fez parte. O sindicato de Xapuri só foi fundado em  1977; o de Brasiléia, em 1975, representava os trabalhadores de toda a  região do Alto Acre.
Aí cresceu o movimento contra o desmatamento?
O  assassinato de Wilson Pinheiro em 1980 foi um duro golpe. A partir de  1983, depois de deixar o mandato de vereador em Xapuri, Chico assumiu a  presidência do sindicato, puxando para a cidade a organização da  resistência contra os desmatamentos e a expulsão dos seringueiros.  Xapuri passou a ser referência de organização sindical, tanto que  convocou o 1º Encontro Nacional de Seringueiros, do qual resultou a  criação do Conselho Nacional e, principalmente, o lançamento da proposta  da criação das reservas extrativistas genuinamente dos seringueiros,  hoje aplicável a qualquer região com populações tradicionais que façam  uso dos recursos naturais sem devastação. 
Como é que o senhor se tornou amigo de Chico Mendes?
Conheci o  Chico quando eu ainda morava em Plácido de Castro. Ele era o presidente  da CUT e acompanhava os acampamentos dos assentados. Em janeiro de 1986  eu estava desempregado. Participei de uma reunião de avaliação do  Projeto Seringueiro, que reunia escolas para alfabetização de adultos e  criação de pequenas cooperativas. As escolas vão até hoje de vento em  popa, mas as cooperativas não funcionavam. Chamaram-me para ajudar.  Sendo alguém “de fora”, eu notaria o porquê de a experiência não estar  dando certo. 
E aí nasceu a cooperativa?
Eu propus  diagnóstico mais aprofundado, comparando seringais onde houve a  experiência das cooperativas com os demais. Mary Alegretti conseguiu um  projeto e fizemos o trabalho de diagnóstico. Foi tão grande que nunca  conseguimos tabular completamente. Isso me fez reafirmar a posição  inicial: o erro não era a idéia, mas a metodologia empregada. Propus ao  Chico construir com os seringueiros a idéia e só depois passar à criação  da cooperativa. Ele topou. 
Contam que o senhor andava a pé?
Às vezes  eu caminhava mesmo! Dezoito horas, dois dias para fazer uma reunião com  seis, oito, dez seringueiros. Eu funcionava como o “problematizador”.  Esse trabalho levou mais de um ano, de abril de 1987 a 30 de junho de  1988, quando finalmente foi fundada a Cooperativa Agroextrativista de  Xapuri Ltda (CAEX), que está funcionando até hoje, não sem dificuldades,  claro! Nasceu da dedicação ao trabalho de campo. 
Chico, a essa altura, estava famoso no mundo?...
Ele se  tornava referência nacional e mundial pela proposta das reservas  extrativistas como modelo de desenvolvimento para a Amazônia. Reconhecia  o meu trabalho e foi meu grande mestre para me ajudar a discutir uma  questão complexa de forma simples, na linguagem dos seringueiros. Sabia  que podia confiar em mim para qualquer coisa. Eu não ficava só no  trabalho técnico, participava dos “empates” e corria os mesmos riscos  enfrentados por ele e outros companheiros. Fazíamos parte da mesma lista  de pessoas “marcadas para morrer”. 
Acredita que se tivessem levado Chico do Acre, ele se livraria do atentado que lhe tirou a vida?
Acredito.  Mas o próprio Chico não queria isso. Ele achava que não valeria a pena  viver se não pudesse estar na luta diária, correndo os mesmos riscos.  Até previu, em entrevista a Edilson Martins (Jornal do Brasil,  edição de 11/12/88) que voltaria ao Acre para ser assassinado. Deu nome  de seus possíveis assassinos e disse: “Se descesse um anjo dos céus e me  garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a  pena, mas ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero  viver!”. De mais a mais, a maioria achava que os pistoleiros e  fazendeiros que pensavam a “empreitada” não seriam loucos de matá-lo.  Nós víamos os pistoleiros todos os dias, durante mais de seis meses, em  Xapuri, armados, ostensivos e, de repente, eles sumiram... 
No seu livro o senhor fala que sentiu a “presença da morte” em 1988. Como seria essa situação, se ocorresse nestes anos 2000?
Primeiro,  acho que hoje não há mais clima no Acre para a presença ostensiva dos  pistoleiros, como naquela época; são outros tempos. O próprio  assassinato do Chico mudou a realidade, isso, sem contar a punição de  Darly e Darci Alves (pai e filho). Darly já respondera a outros  processos por homicídio. A família parece ter uma história sangrenta  desde os anos 1950 do século passado, na região de Ipanema, Pocrane  (MG). Fugiram para Nova Jerusalém, distrito de Umuarama (PR) e de lá  para o Acre, no início dos anos 1970, depois de acusados do assassinato  de Acir Urizzi. Por esse crime Darly só foi condenado após a morte do  Chico. Segundo, a sensação, com certeza não é boa: naqueles momentos, o  que eu sentia é que, se fosse para morrer, morreria em pé, sem correr.  Nunca senti medo de morrer. Sabia que, se acontecesse, era parte da  luta. 
Sente alguma frustração depois disso tudo?
A maior  frustração foi, sem dúvida, ter visto como o Estado (a União e o Acre)  foi incompetente para evitar o assassinato do Chico, a morte mais  anunciada que tivemos por aqui, mas que não foi tratada com o devido  cuidado por quem de direito. Se o Chico fosse vivo, as conquistas  seriam, sem dúvida, bem maiores. 
Como foi a sua opção por fazer o Curso de Direito?
Lá pelos  idos de 1992, conversando em frente ao sindicato, vários companheiros  comentavam que a gente estava sempre precisando de advogado e que nunca  tinha algum para defendê-los, inclusive quando eram presos pelos  “empates” ou contra a expulsão de suas colocações. Diziam, ainda, que  até que o filho de um deles conseguisse chegar à Universidade, talvez já  não existissem mais direitos a serem defendidos. Eu falei: pra  mim é só fazer outro vestibular! E eles: você faria isso? Eu disse:  claro, por que não? Ali ficou decidida a minha inscrição no vestibular  de Direito da UFAC em 1993. Havia parado de estudar dez anos antes e  corria o risco de não passar. Passei e já pude atuar em processos  importantes para os trabalhadores rurais, conheci outros lugares,  construí uma alternativa econômica, acreditei que é possível desenvolver  sem destruir. O que eu aprendi com os seringueiros sobre meio ambiente,  ecologia e direitos, não aprenderia em nenhuma universidade do mundo.  Também tenho essa gostosa “dívida” para com meus amigos e amigas da  floresta. 
É possível conciliar a pecuária de corte com o extrativismo? 
Com  grande preocupação.Uma coisa é o seringueiro ter duas, três cabeças de  gado que funcionam como uma “poupança” para momentos de necessidade;  outra é ter 20, 50, 100 cabeças. Aí a pressão sobre a floresta já é  muito grande: a presença do gado leva os seringueiros a deixar de lado  uma de suas práticas mais fundamentais para evitar a devastação, que é a  rotação de capoeiras, ou seja, o seringueiro faz seu pequeno  desmatamento de 1,5 ha por ano, usa essa área por dois anos, depois a  abandona e deixa formar capoeira para, seis, sete anos, depois volta a  utilizá-la. Isso evita o desmatamento de novas áreas. Mas se quer criar  gado, em vez de deixar formar a capoeira, ele planta pasto; aí, todo ano  ele tem de desmatar. É impossível conciliar gado com reserva  extrativista, a menos que seja, como já disse, poucas cabeças, como  “reserva financeira”, para vender ao açougueiro, em caso de necessidade.  Em alguns casos, o gado que está na reserva nem é do seringueiro; é do  fazendeiro que arrenda o pasto. Aí, a devastação será ainda maior, sem  quase nenhum retorno para o seringueiro. 
Por que a Reserva Extrativista deu visibilidade aos seringueiros da Amazônia?
Até o  lançamento dessa idéia no 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, os  ambientalistas do Brasil e do mundo tinham um só discurso: “é preciso  preservar a Amazônia”, mas nenhuma proposta, nenhum projeto.  Normalmente, eles entendem o homem como um “ser predador” que precisa  ser removido para a conservação ambiental. Já o governo federal tinha o  projeto de “integrar a Amazônia” com grandes rodovias e torná-la uma  “região produtiva”. Esse, aliás, é um modelo devastador. Quando os  seringueiros fizeram uma proposta de usar a floresta, mantê-la  produtiva, sem destruí-la, os ambientalistas adotaram um modelo de  desenvolvimento para a região. Assim, quando o governo defendia a  necessidade de “desenvolver a Amazônia”, rapidamente eles podiam  responder: “Nós concordamos com a reserva extrativista, como querem os  seringueiros”. Ou seja, havia a possibilidade de dois modelos: um  predatório, facilitando a criação de gado, outro conservacionista,  baseado no uso dos recursos naturais – látex, castanha, fibras, plantas  medicinais, resinas, corantes etc –, com exploração pelas próprias  populações tradicionais, portanto, sem devastação.

 
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