sábado, 24 de setembro de 2011

O cotidiano dos guerrilheiros das Farc

Saiba como é o dia-a-dia de um acampamento, suas regras de convivência, sua organização e a necessidade de estar sempre alerta contra os ataques do Exército e dos paramilitares.


Por Jacques Gomes Filho [16.09.2011 17h15]

(A matéria foi publicada na edição 58, de janeiro de 2008)

Os helicópteros do Exército passam tão perto da copa das árvores que fica difícil acreditar que eles não podem nos ver. Depois do terceiro vôo rasante, a jovem que me guia pela selva colombiana pergunta se tenho certeza que os aparelhos eletrônicos que trago estão mesmo desligados. A preocupação com a segurança começou antes mesmo de iniciar a viagem ao acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Foram quase três meses de negociações até conseguir a autorização para entrevistar o comandante Raúl Reyes (leia entrevista aqui).

Passei os quatro primeiros dias da viagem sendo levado de uma casa a outra de simpatizantes da guerrilha. Era a estratégia para despistar os serviços de inteligência que atuam nesta região de fronteira da Colômbia. De casa em casa, esperávamos o momento certo para entrar no acampamento. Soldados do exército e paramilitares faziam ronda, em um sinal claro de que havia conflitos com as Farc. A maioria dos 30 milhões de pobres colombianos vive em áreas fronteiriças do país, onde as estruturas do Estado funcionam precariamente. É no vácuo deixado pelo governo que cresce a influência e reside a força da guerrilha armada mais antiga do continente. As Farc lutam há 43 anos para chegar ao poder e instalar o socialismo no país.

Depois de duas horas de caminhada pela mata, encontramos os primeiros guerrilheiros. Uma mulher separava tábuas ao lado da trilha. Mais à frente, um casal fazia a vigilância, com metralhadoras a tira-colo e rádio em punho. Ninguém sabe ao certo o número exato de combatentes, mas se estima que existam cerca de 17 mil guerrilheiros. Uns passos a mais e a jovem guia se volta outra vez para mim. Pronuncia as palavras que só iriam fazer sentido alguns dias mais tarde: “Bem-vindo, esta é nossa casa”.

Raúl Reyes nos recebe pessoalmente, perguntando se fizemos boa viagem. Além de porta-voz das Farc, Reyes é o comandante de um dos sete blocos que formam a organização. Ele tem sob seu comando pelo menos 3 mil guerrilheiros. No acampamento em que acabava de chegar, vivem, no mínimo, cinqüenta combatentes. Ele me convida a entrar em sua caleta, como são conhecidas as barracas por aqui. Tudo no acampamento é feito de lona e madeira. Por isso, o facão está sempre à vista. Até mesmo na mesa do comandante, em meio a livros e um computador portátil. Em uma conversa rápida, ele se recusa a responder minhas primeiras perguntas sobre as políticas da organização. Diz que conversaríamos sobre tudo, mas apenas durante a entrevista. Fala sempre em tom baixo e com a expressão tranqüila no rosto. O comandante me explica o dia-a-dia do acampamento e começo a entender como as regras locais iriam influenciar meu trabalho. “Amanhã de manhã você vai ser avisado sobre o cronograma da sua estadia aqui. Você não deve filmar nem tirar foto de nada até lá”. Tudo no acampamento é rigorosamente programado. A disciplina militar está presente e é vital para a sobrevivência na selva. Sem ela, seria difícil controlar reservas de mantimentos e munições durante épocas de conflitos como esta. E seria praticamente impossível sobreviver tanto tempo lutando contra um exército dez vezes maior e mais bem equipado.

Um soldado se aproxima com um rádio na mão. Não precisa dizer nada para que Reyes interrompa nossa conversa e se aproxime a ele. Conversam baixo por alguns minutos. O comandante então se volta para a jovem que me trouxe ao acampamento. “Adriana, leve o jornalista à caleta”. Ela me guia pela última vez e chego à barraca que ocuparia pelos próximos três dias. Uma tela para evitar insetos pendia do teto, mais parecendo um artigo de luxo. Iria descobrir naquela mesma noite que no fundo é item de necessidade básica na selva. O calor e os insetos costumam ser tão temidos quanto os paramilitares.

O dia começa

]As atividades no acampamento começam antes do sol nascer. Por volta das cinco horas da manhã um ruído desperta os guerrilheiros que ainda não acordaram. Parece o gorjear de um pássaro raro, mas o som sai de um sopro contra a mão pressionada na boca. Sinal que é hora de levantar. Devagar e fazendo o mínimo de barulho, cada guerrilheiro se recompõe da noite e arruma a própria barraca. Armas e mochilas são deixadas prontas, ao alcance da mão. Em silêncio, eles se reúnem no meio do acampamento para ouvir as ordens que vêm do comando. Quem os vê pela primeira vez não consegue entender como podem se comunicar no escuro e falando em tom tão baixo.

Saem em dois grandes grupos, um para cada lado do acampamento. Em fileira indiana, metem-se na mata e desaparecem. Um guerrilheiro de nome César me explica que a primeira tarefa é também a mais importante do dia. “O amanhecer é o período mais crítico em uma área de conflito. É a hora preferida para os assaltos do inimigo”. Por quase meia hora eles caminham em volta do acampamento, fazendo uma espécie de pente-fino pela área. Quando voltam, o café da manhã está servido.

O comando define as tarefas de cada um e as transmite pela manhã. Todos fazem de tudo e o rodízio obriga os guerrilheiros a terem múltiplas habilidades. A dupla que cozinha se encarrega de três refeições antes de entregar a função. O turno da vigilância do acampamento é ainda mais exigente: dura 24 horas, nas quais a atenção é vital para a proteção de todos. “Se escutarmos um tiro a qualquer momento do dia sabemos que isso é sinal de alerta”, esclarece o guerrilheiro Arnóbis. “No caso de sermos atacados, cada um sabe a posição que tem que ocupar”.

A tática de guerrilha permite às Farc controlar um território imenso da selva colombiana. Os acampamentos, por exemplo, são sempre transitórios. Raramente ficam armados num mesmo local por mais de quatro meses. Uma das estratégias para manter reféns às vezes por mais de dez anos é trocar o cativeiro periodicamente. A mobilidade dificulta a localização dos prisioneiros, mesmo nos casos mais complicados como o de Ingrid Betancourt. A ex-candidata à presidência da Colômbia é procurada por agentes do mundo inteiro. No entanto, é mantida escondida em algum lugar da selva há quase seis anos.

Os guerrilheiros não dizem – e possivelmente não sabem – qual o número total de acampamentos espalhados pelo país. Mas todos eles, segundo um dos combatentes, estão interligados por trilhas e caminhos que levam de um extremo a outro da Colômbia sem passar por nenhum controle do Estado. O trânsito livre garante o abastecimento de alimentos e munições. Cada combatente carrega um arsenal próprio, com pistolas, metralhadoras e até granadas.

No fim do café, a luz do dia já tomou conta da selva. Raúl Reyes me chama mais uma vez a sua barraca – que funciona como uma espécie de comando central do acampamento. Sou informado que a entrevista fica para a manhã do dia seguinte. “É melhor não filmar nada até lá.” Uma combatente se aproxima de minha caleta enquanto ainda busco compreender a razão por trás das últimas palavras do comandante. Seu nome é Eliane.

As mulheres das Farc

Adriana, César, Arnóbis e Eliane são nomes-de-guerra. Assim como Raúl Reyes. O homem que controla a comunicação das Farc com o mundo na verdade se chama Luis Edgar Devia Silva, tem cerca de 60 anos de idade e três filhos que vivem na cidade de Caquetá. A vida civil de cada um dos guerrilheiros é ocultada atrás de nomes fictícios. “Uma maneira de nos proteger e proteger as nossas famílias”, diz Eliane. Mas no caso desta mulher, que aparentava beirar os 40 anos, o disfarce não foi suficiente para evitar uma tragédia familiar.
Eliane é uma das mulheres mais antigas na guerrilha – hoje elas representam cerca de 30% do efetivo das Farc. Ela se incorporou às fileiras no começo da década de 1980, quando a presença do braço político das Farc nas zonas urbanas era constante e, de certa forma, consentida pelo governo. Eliane cresceu ouvindo histórias do líder máximo e fundador da organização. “Desde pequena, [Manuel] Marulanda esteve muito presente em minha cidade. Sabíamos que ele comandava um grupo armado que lutava para libertar o país. Éramos muito pobres em casa. Quando tive a chance me juntei a eles.”
O preço pela ousadia ela pagaria anos mais tarde. As ações clandestinas de Eliane foram monitoradas durante meses pelo que ela chama de “forças inimigas”. Seus dois filhos e sua mãe foram assassinados por paramilitares.

Os guerrilheiros que conheci têm entre 20 e 40 anos de idade. Nenhum deles pode casar nem criar seus filhos no acampamento. A maternidade é vista, até mesmo pelas mulheres, como um empecilho ao dia-a-dia da guerra. Para namorar um companheiro, é preciso pedir autorização para os chefes, que precisam saber onde e com quem estão cada um dos membros. Os namorados vivem juntos na mesma caleta e se tratam por “sócios”. “Por mais que pareça estranho, é normal dentro de nossas regras”, diz uma combatente conhecida como Suzana.

Um breve silvo do chefe de turno anuncia a chegada de novidades. Uma nova provisão de caramelos e cigarros seria repartida entre as frentes. A fila se forma rápido. Um a um, os guerrilheiros passam o chapéu para receber a ração individual. A comida, as roupas, as ferramentas e as armas usadas no acampamento são repartidas igualmente entre todos os membros, não importando a sua hierarquia. Eles gostam de dizer que por ali não há privilégios. “O socialismo pelo qual lutamos começa aqui dentro. Homens e mulheres, chefes ou subordinados. Tratamos uns aos outros como se fôssemos iguais”, diz o combatente Kevin.

As limitações impostas pela guerra e a vida dura na selva são preços altos que nem todos estão dispostos a pagar. Segundo o governo colombiano, nos últimos cinco anos, mais de 45 mil combatentes entregaram as armas, incluindo membros das forças paramilitares, do Exército de Libertação Nacional (ELN) e também das Farc. Desta última, 1.881 militantes teriam desertado só em 2006. O que está longe de significar o fim da guerra, como me explicaria na manhã seguinte Raúl Reyes. “Assim como morrem alguns e outros desertam, que não são muitos, também ingressam muitos mais. Vão ingressando, fazendo cursos... São vinte, são cinqüenta, são cem. Com isso, não apenas substituem os que se foram e morreram, mas continua o crescimento das frentes de todas as unidades da organização.”

Terminada a entrevista, o comandante me avisa que, agora sim, poderia filmar o acampamento. Por fim me deu as razões de haver restringido meu trabalho até ali. “Chegaram os uniformes”, disse ele. A preocupação com a imagem que a organização passa aos meios de comunicação e, conseqüentemente, ao mundo se justifica. A principal luta das Farc hoje é mudar sua imagem internacional, sempre associada à criminalidade. Desde 1977, a Convenção de Genebra classifica a guerrilha colombiana como “combatentes ilegítimos”. Para a União Européia são uma “organização terrorista”.

O objetivo da guerrilha é ser reconhecida como “força beligerante”, o que lhe permitiria voltar ao cenário partidário da Colômbia com melhores garantias para seus candidatos. Para isso, lutam para passar a imagem de um grupo coeso e bem organizado, com ações políticas paralelas às militares e reconhecimento internacional. No entanto, o uso de seqüestros extorsivos como estratégia de financiamento e de minas terrestres como tática de guerra não ajudam muito a melhorar a imagem da guerrilha mundo afora.

Saio do acampamento um dia depois de entrevistar o comandante Reyes. Desta vez não é Adriana quem me leva e sim um homem conhecido como Humberto. Mas aquelas palavras da primeira combatente que encontrei na viagem ainda estão presentes. Antes de entrar na trilha, uma rápida olhada para trás me faz ver um acampamento distinto daquele que conheci dias antes. Talvez não uma casa, como me havia sugerido Adriana. Mas um espaço de convivência política e militar que insiste na idéia de transformar o continente.

Releia a edição 58 aqui.

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