Em Luciara, latifúndio sem máscaras
Numa pequena localidade à beira do Rio Araguaia, emerge a brutalidade dos que se julgam donos do Brasil
Por Taís González e Bruna Bernacchio/outraspalavras.net
Tiros foram disparados contra casas de
religiosos. As moradas de dois pequenos agricultores (um deles, também
vereador) foram queimadas até a completa destruição. A rodovia MT 100,
que dá acesso à cidade, foi bloqueada. Milícias armadas detiveram um
ônibus com pesquisadores e estudantes do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia
e tentaram revistar seus ocupantes. Máquinas foram colocadas na pista
de pouso do aeroporto e montaram-se estratégias para evitar a chegada de
pessoas pelo rio Araguaia. Entre 20 e 22 de setembro, a pequena cidade
de Luciara (2.300 habitantes), no extremo nordeste do Mato Grosso (1160
km. de Cuiabá), viveu de forma concentrada a violência que os grandes
proprietários rurais praticam há séculos contra os que resistem a seu
poder no campo.
Motivo: um pequeno grupo de fazendeiros
quer evitar, à força, a criação de uma Reserva de Desenvolvimento
Sustentável no município. A constituição da unidade é proposta do Instituto Chico Mendes (ICMBio),
Visa evitar que se concretize uma ameaça social e ambiental. Há algum
tempo, os latifundiários – na verdade “grileiros”, que ocuparam terras
públicas – estão avançando sobre os pequenos sítios mantidos, em
condições comunais, sustentáveis e de integração com a natureza, por
cerca de cem famílias. São os “retireiros do Araguaia”.
Há mais de um século, desde a colonização
de Luciara, caboclos vivem da criação coletiva de gado em Mato Verdinho,
uma terra da União na beira do Araguaia. São pequenos ordenhadores, que
criam à solta seu gado nas pastagens naturais do cerrado e varjões da
região, numa dinâmica de agroextrativismo do capim nativo, de forma
extensiva e com pouca alteração da paisagem natural. É uma prática
tradicional, adequada às características ecológicas e sociais locais.
Nestas áreas, há o espaço do retiro, local de moradia e manejo do
gado, organizado individualmente ou em grupo. Nos retiros são
construídas casas, piquetes para manejo de gado, currais e cisternas.
Varjões, lagos, rios, matas não inundáveis e toda a paisagem é de uso
comum.
Há cerca de quinze anos, os caboclos
articularam-se e formaram duas organizações: Associação dos Retireiros
do Araguaia (ARA), e Associação dos Produtores Rurais do Mato Verdinho
(Aprumav), apoiada por professores e alunos da Unemat, que mantém uma unidade em Luciara. Aos poucos, desenhou-se a ideia de instituir a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Trata-se de uma das categorias definidas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
Visa preservar territórios onde populações tradicionais têm sua
subsistência emsistemas sustentáveis de exploração dos recursos
naturais. A reserva, julgam os retireiros, poderá frear o avanço de
pecuaristas.
Em 21 de setembro, espalhou-se o boato –
depois não confirmado – de que técnicos do ICMBio chegariam à cidade,
para iniciar os estudos necessários à criação da RDS. “Tem algumas
pessoas, com interesses contrários, disseminando informações erradas de
que esses fazendeiros seriam retirados da área. O processo ainda não
está pronto, mas precisamos aprofundar esse debate”, disse Fernando
Francisco Xavier, representante do instituto no Mato Grosso. Já em 19 de
setembro, aliás, os grileiros haviam barrado, segundo a Comissão
Pastoral da Terra, dois geógrafos. Também barraram na estrada, por duas vezes, o ônibus da Nova Cartografia Social – um projeto
que estimula os povos amazônicos a se auto-conhecerem e mapearem, como
parte do desenvolvimento de suas identidades coletivas. Jagunços queriam
revistar o veículo, ameaçaram incendiá-lo e proibiram que fossem
tiradas fotografias. Também impediram que o grupo seguisse até São Félix
do Araguaia. Os geógrafos e alunos pretendiam realizar uma Oficina de
Mapas com os retireiros de Luciara.
A prelazia da cidade, braço da Igreja
Católica, também virou alvo porque é “acusada” de apoiar o projeto de
reserva. Há alguns meses, padres e líderes comunitários foram ameaçados
por grupos ligados aos políticos e fazendeiros da região, contrários à
demarcação da Terra Indígena Marãiwatsédé, área ocupada pelos Xavantes
até a década de 60. O bispo Emérito de São Félix do Araguaia, D. Pedro
Casaldáliga, teve que deixar sua casa após seguidas ameaças de morte
realizadas por esses grupos.
Na terça-feira (24/9), a Polícia Federal
finalmente chegou ao local. Cumprindo ordem judicial, executou a prisão
temporária de dois homens, indiciados pelos crimes de constrangimento
ilegal, dano, incêndios e formação de quadrilha. A situação segue tensa
em Luciara. Lá, o latifúndio expôs suas garras – mas encontrou
resistência.
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