"Índio é invenção total, folclore puro"
Tatiana Mendonça /Jornal A Tarde
Volta e meia, o paraense Daniel Monteiro Costa, 50, ouve cochichos
de desconhecidos apostando se ele é ou não índio. Quase sempre concluem
que não, já que anda vestido como qualquer outra pessoa, fala português
corretamente, escreve livros, ganha prêmios - como o Jabuti e a Ordem do
Mérito Cultural, da presidência da república - e ainda tem doutorado em
educação pela USP. Sempre que isso acontece, Daniel fica feliz. Não se
considera um índio, esse "apelido horroroso", mas tem orgulho de ser
munduruku, etnia a que pertence. "Só o nome diz o que a gente é". É como
Daniel Munduruku que assina os 47 livros que já publicou. O mais
recente deles, Das coisas que aprendi, foi lançado no dia 25/11 em
Salvador. Ele defende, porém, uma variação do "apelido" para marcar a
literatura que faz, comumente chamada de literatura indígena, para
evitar comparações com escritores como José de Alencar. "A literatura
indigenista que ele escreveu detonou com a gente". Sua luta tem,
naturalmente, direção oposta. Deseja que os povos que habitam o Brasil
desde antes de o Brasil existir sejam respeitados como são, sem
estereótipos, sem folclore. Para isso, recomenda que as escolas comecem
por abolir do calendário a comemoração pelo 19 de abril. No começo deste
mês, ele foi escolhido pelo Ministério da Cultura para representar o
país no Salão do Livro de Paris, ao lado de 47 autores.
No livro, o senhor fala que na escola a criança "abandona sua
compreensão real dos sentidos da existência" em troca de um "futuro
linear". Para combater isso, defende uma pedagogia do "desentortamento
do pensamento". Que pedagogia é essa?
Minha percepção é que criança é livre, inteira, intensa. Quando ela
entra na escola, entra numa forma, que é a chamada formação. A criança
não divide os saberes. Brincar, aprender, correr, subir na árvore, tudo é
uma coisa só. Quando ela vai para a escola, é tirada desse universo
integral e é apresentada para ela uma sociedade dividida em
conhecimentos. Por isso a escola entorta o pensamento da criança. A
gente precisa voltar para a nossa origem de aprender as coisas não
divididas. Quando a gente trata as coisas como um conjunto, a gente toma
conta, cuida. Não tem rico nem pobre, branco nem preto, noite nem dia.
Tudo é uma coisa só e você faz parte da natureza. A escola aprisiona o
pensamento nessas categorias de certo, errado, bom e mau. A teia da vida
é completa e a gente acaba se esquecendo disso, ao desenvolver a ideia
de que nós somos donos. A criança aprende na escola que ela tem que
dominar e aí passa a destruir tudo, né, porque é dela, ensinaram isso
para ela. É educada para ser senhor da natureza, das coisas.
Como a escola poderia se aproximar disso que o senhor fala?
Não é a escola que tem que fazer isso. Ela é vítima também. A escola
foi criada para ser um instrumento de colonização do pensamento. Só quem
pode fazer isso é a família, a comunidade. O desentortamento do
pensamento só é possível com pais conscientes, com uma comunidade
consciente. A escola é um instrumento de escravização. Então não adianta
pensar em mudar a escola no sistema econômico que a gente vive. É
importante para esse sistema que a gente não goste uns dos outros,
porque com a inveja se vendem mais coisas. Aí a gente quer ter a melhor
roupa, o melhor carro, a melhor casa. A gente não trata mais ninguém
como um igual.
Mas os pais têm cada vez menos tempo de passar esses ensinamentos.
A criança ora é vista como um estorvo, porque ainda não é
economicamente produtiva, ora é vista como um investimento. São duas
formas desqualificadas de tratar a criança. A sociedade perdeu a
dimensão dos rituais. Não marca mais o tempo como deveria marcar. De
modo que as crianças não são mais crianças, adolescentes não são mais
adolescentes, estão todos envolvidos com essa busca incessante de ser
alguém na vida. E ser alguém na vida parece ser uma maldição que as
pessoas carregam consigo, como se criança já não fosse alguém, ou o
velho já não fosse alguém. É uma sociedade que está mudando seu conceito
de família justamente porque está jogando a mãe no mercado de trabalho.
Essa ideia de direitos iguais, mãe e pai, mulher e marido, isso foi a
grande derrocada do nosso sistema atual. Não que não seja igual ou não
tenha direitos iguais, mas o fato é que a mãe ocupa um papel fundamental
na vida da criança. E quando ela abre mão disso, todos pagam um preço
muito alto. Eu nem sei se é certo ou errado o que digo, e também não
estou preocupado com isso.
As feministas não devem gostar muito.
Quero fazer as pessoas pensarem. É a ideia da teia. Se cada um não
segura sua ponta no fio dessa teia, alguma coisa vai ficar faltando. E
infelizmente é o que está acontecendo.
O senhor falava de rituais. Nós estamos "desbussolados" em relação ao tempo?
Novamente a gente entra na questão da educação, em que a gente é levado
a pensar o tempo como um negócio. A pessoa vive para um tempo que não
existe. Especulação e planejamento são palavras que têm a ver com uma
tentativa de dominar um tempo que a gente não tem. O que é planejar
senão tentar trazer o futuro para o agora? Quando você faz esse
movimento, esquece de viver o agora. E aí é que entra a grande lição dos
povos indígenas. São povos educados para o hoje. Por isso, são mal
vistos na sociedade, são considerados um estorvo, porque não entram na
roda-viva da produção, da busca de riquezas. Representam o contrário de
tudo isso. Representam o fazer a vida acontecer agora. Só existe esse
tempo, esse momento. A criança só é criança hoje. E ela tem que viver
plenamente o seu ser criança para poder se realizar. Quando vira
adolescente, ela não tem saudade de ser criança. E quando vira adulto,
não tem saudade de ser adolescente. E quando você vira avô, é um outro
papel. É papel do avô numa sociedade indígena educar o espírito da
criança, contar histórias. E isso, claro, numa sociedade que precisa que
as pessoas produzam não vale nada... A sociedade de hoje é uma
sociedade de um amanhã que não existe.
Como o senhor passou de professor a escritor?
De uma maneira muito natural. Eu me graduei em filosofia, que é um
conhecimento que não serve para outra coisa a não ser dar aula. Eu dava
aula sobretudo para adolescentes. Comecei a relacionar mitos indígenas
brasileiros à mitologia grega e a contar essas histórias também para
crianças. Um dia, uma delas me perguntou se ela encontraria em algum
livro aquilo que eu estava contando. Descobri que não, que as histórias
que eu sabia contar não estavam escritas. Aquilo foi como um cair de
ficha. Comecei a escrever primeiro numa perspectiva pedagógica e depois
apenas por deleite. Quando escrevo, é como se atualizasse uma memória,
sabe? Meu primeiro livro, Histórias de índio, foi lançado em 1996. Até
hoje é meu best-seller, tem mais de 50 mil exemplares vendidos. No
conjunto da minha obra, já vendi uns dois milhões de livros.
Sempre se referem ao senhor como um autor de literatura indígena. Esse apêndice o incomoda ou o orgulha?
Sempre faço questão de dizer que sou um indígena que escreve. Alguns
colegas escritores falam: 'Mas, Daniel, você escreve bem... Por que tem
que colocar literatura indígena?'. Respondo que, se eu não colocar
literatura indígena, vão me comparar a José de Alencar. Não quero isso.
Porque a literatura indigenista que ele escreveu detonou com a gente.
Tem muitos livros de bons escritores que dizem bobagens sobre os
indígenas. Não é culpa deles. É o estereótipo que aprenderam e
reproduzem. Hoje a literatura indígena é um fenômeno no Brasil. São mais
de 40 autores. É importante que a gente reafirme de onde é que vem o
que a gente escreve. Senão, sempre vai dar a impressão de que o indígena
é só um brasileiro, e não é isso. O indígena não é brasileiro.
Não?
Não do ponto de vista do lugar dele. Ele é brasileiro do ponto de vista
do território, que, aliás, querem acabar com o nosso território...
Porque a ideia do brasileiro é exatamente aquele que pertence a esse
território, a essa nação, sem contar as diferenças. E nós somos
brasileiros, sim, mas diferenciados, e como tal queremos continuar
sendo. Não queremos simplesmente ser José de Alencar. Eu quero ser o
Daniel Munduruku. Munduruku significa dizer que eu pertenço a um povo, a
uma tradição, a uma trajetória de vida que é peculiar.
Hoje há uma lei que determina que a cultura e a história
indígenas sejam ensinadas nas escolas e também há um maior acesso dos
indígenas à universidade, por meio das cotas. Quão longe estamos de
vê-los por um viés menos folclórico?
São avanços. Há 10 anos, não tinha literatura indígena para ser lida
nas escolas. Já que existe a lei, a gente quer oferecer um material que
avance um pouquinho nessa nossa relação, sabe? A gente não quer ser
tratado por esse apelido horroroso que colocaram na gente, índio. A
gente quer ser tratado pelos nossos nomes. Apelido só detona a gente. Só
o nome diz o que a gente é. Eu ser Munduruku é diferente de ser índio.
Índio é uma invenção total, é folclore puro. Agora, ser Munduruku, não. É
ter toda uma série de saberes que me dá identidade. As escolas têm que
começar a arrancar do seu calendário a comemoração do dia 19 de abril. O
que faz uma escola comemorar o dia do Índio? Ela está comemorando o
folclore, uma ideia congelada de que são seres do passado, que nem
existem mais... Ou quando existem, são esses camaradas meio mestiços,
né, que a maioria das pessoas diz: "Ah, esse não é mais índio, não...".
Quantas vezes já ouvi isso, e fico até feliz. Por ser graduado, por ser
doutor, por falar bem o português, por escrever livro, por ganhar
prêmio... Esse daí não é mais índio... Fico feliz. Finalmente, alguém
entendeu alguma coisa (ri).
Quando pensamos em minorias históricas, vemos alguns avanços
nas políticas públicas direcionadas às mulheres, aos negros, aos gays,
ao menos em termos de visibilidade. Os índios, no entanto, permanecem
como uma espécie de minoria da minoria. Como mudar isso?
O grande problema do indígena é que ele quer uma coisa que os outros
não querem. Ele quer terra, precisa da terra para manter sua identidade.
O movimento negro, quando muito, luta pela demarcação de um quilombo,
mas na maioria das vezes briga pelo direito de ir à universidade, de ter
acesso ao mercado de trabalho. Ou seja, luta para ser um brasileiro
comum. O indígena não quer fazer parte da sociedade. Ele quer manter a
sua maneira de viver. O pior é que estão nas terras que os
megalomaníacos capitalistas querem. Para um governo resolver a situação
do indígena, tem que brigar com esses grupos que são donos dos
financiamentos de campanha. Espero que agora, no segundo mandato de
Dilma, inclusive empurrado pelo governo popular, ela tome consciência...
Ela tem feito discursos de que vai ouvir mais essas populações, coisa
que não fez até agora. Ao mesmo tempo, quando alguém diz que Kátia Abreu
vai assumir o Ministério da Agricultura, a gente já fica meio com o pé
atrás... Mas ainda tenho um pinguinho de esperança de que o grito das
urnas faça acordar esse gigante... Vamos ver.
O senhor vive no interior de São Paulo. Como o senhor acompanha as questões relacionadas à sua tribo?
Com essa coisa de internet, tenho contato direto com a turma dentro das
aldeias, nas brigas aí pela não construção de hidrelétricas. O povo
munduruku tem decidido que não quer essas hidrelétricas. Talvez para os
paulistas e para o pessoal daqui do Nordeste, isso não cause grande
impacto, mas é novamente a falta de compreensão de que nós somos uma
teia. O que afeta o rio Tapajós lá no meio da Amazônia há de afetar cedo
ou tarde essa região aqui e todas as outras do Brasil. Com toda essa
transformação climática que a gente está vivendo, é impressionante como
as pessoas ainda não se dão conta disso.
Seja o primeiro a comentar
Postar um comentário