Altair Sales Barbosa: o Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água
Elder Dias /Jornal Opção
Uma ilha ambiental em meio à metrópole
está no Campus 2 da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC
Goiás). É lá o local onde Altair Sales Barbosa idealizou e realizou uma
obra que se tornou ponto turístico da capital: o Memorial do Cerrado,
eleito em 2008 o local mais bonito de Goiânia e um dos projetos do
Instituto do Trópico Subúmido (ITS), dirigido pelo professor.
Foi lá que Altair, um dos mais profundos
conhecedores do bioma Cerrado, recebeu a equipe do Jornal Opção. Como
professor e pesquisador, tem graduação em Antropologia pela Universidade
Católica do Chile e doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pelo Museu
Nacional de História Natural, em Washington (EUA). Mais do que isso, tem
vivência do conhecimento que conduz.
É justamente pela força da ciência que ele dá a
notícia que não queria: na prática o Cerrado já está extinto como bioma.
E, como reza o dito popular, notícia ruim não vem sozinha, antes de
recuperar o fôlego para absorver o impacto de habitar um ecossistema que
já não existe, outra afirmação produz perplexidade: a devastação do
Cerrado vai produzir também o desaparecimento dos reservatórios de
água, localizados no Cerrado, o que já vem ocorrendo — a crise de
abastecimento em São Paulo foi só o início do problema. Os sinais dos
tempos indicam já o começo do período sombrio: “Enquanto se está na
fartura, você é capaz de repartir um copo d’água com o irmão; mas, no
dia da penúria, ninguém repartirá”, sentencia o professor.
“Memorial do Cerrado” – o nome deste espaço
de preservação criado pelo sr. aqui no Campus 2 da PUC Goiás, é uma
expressão pomposa. Mas, tendo em vista o que vivemos hoje, é algo quase
que tristemente profético. O Cerrado está mesmo em vias de extinção?
Para entender isso é preciso primeiramente entender
o que é o Cerrado. Dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é
o mais antigo. A história recente da Terra começou há 70 milhões de
anos, quando a vida foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o
planeta começou a se refazer novamente. Os primeiros sinais de vida,
principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje
constitui o Cerrado. Portanto, vivemos aqui no local onde houve as
formas de ambiente mais antigas da história recente do planeta,
principalmente se levarmos em consideração as formações vegetais. No
mínimo, o Cerrado começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40
milhões de anos.
O Cerrado é um tipo de ambiente em que vários
elementos vivem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação
depende do solo, que é oligotrófico [com nível muito baixo de
nutrientes]; o solo depende de um tipo de clima especial, que é o
tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários
outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma – o
fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a
dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado.
Assim, é um ambiente que depende de vários
elementos. Isso significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou
seja, uma vez degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua
biodiversidade. Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz
ambiental que já se encontra em vias de extinção.
Por que o sr. é tão taxativo?
Uma comunidade vegetal é medida não por um
determinado tipo de planta ou outro, mas, sim, por comunidades e
populações de plantas. E já não se encontram mais populações de plantas
nativas do Cerrado. Podemos encontrar uma ou outra espécie isolada, mas
encontrar essas populações é algo praticamente impossível.
Outra questão: o solo do Cerrado foi degradado por
meio da ocupação intensiva. Retiraram a gramínea nativa para a
implantação de espécies exóticas, vindas da África e da Austrália. A
introdução dessas gramíneas, para o pastoreio, modificou radicalmente a
estrutura do solo. Isso significa que naquele solo, já modificado, a
maioria das plantas não conseguirá brotar mais.
Como se não bastasse tudo isso, o Cerrado foi
incluído na política de expansão econômica brasileira como fronteira
de expansão. É uma área fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes
modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a
isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo. É possível
tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade,
usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os
lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais
infiltrar na terra.
Onde há pastagens e cultivo, então, o Cerrado está inviabilizado para sempre, é isso?
Onde houve modificação do solo a vegetação do
Cerrado não brota mais. O solo do Cerrado é oligotrófico, carente de
nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse
solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para outros tipos de planta,
mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o
ambiente original, em termos de vegetação e de solo.
Mas o mais importante de tudo isso é que as águas
que brotam do Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes
bacias do continente sul-americano. É daqui que saem as nascentes da
maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero
tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele
brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se
recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida
pela vegetação nativa do Cerrado. Essa vegetação tem plantas que ficam
com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços no
subsolo. Isso evidencia um sistema radicular [de raízes] extremamente
complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a
água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano,
que são os aquíferos.
Quando se retira a vegetação nativa dos chapadões,
trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa
vegetação introduzida – por exemplo, a soja ou o algodão ou qualquer
outro tipo de cultura para a produção de grãos – tem uma raiz
extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não
infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos lençóis vai
diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.
“AS PLANTAS DO CERRADO SÃO DE CRESCIMENTO
MUITO LENTO. QUANDO PEDRO ÁLVARES CABRAL CHEGOU AO BRASIL, OS BURITIS
QUE VEMOS HOJE ESTAVAM NASCENDO. ELES DEMORAM 500 ANOS PARA TER DE 25 A
30 METROS. TAMBÉM POR ISSO, O DANO AO BIOMA É IRREVERSÍVEL”
Qual é a consequência imediata desse quadro?
Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a
cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por
causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam
reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que
forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido
de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo
da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma
que vai se extinguindo.
Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há
uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá
mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação
desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970:
entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as
águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível
desses aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito
distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então,
esses rios vão desaparecer.
Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em
extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não
existem mais comunidades de animais – grande parte da fauna já foi
extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais
polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência,
as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à
extinção também. Por fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de
todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.
Como é a situação desses aquíferos atualmente?
Há três grandes aquíferos na região do Cerrado: o
Bambuí, que se formou de 1 bilhão de anos a 800 milhões de anos antes do
momento presente; os outros dois são divisões do Aquífero Guarani, que
está associado ao Arenito Botucatu e ao Arenito Bauru que começou a se
formar há 70 milhões de anos. O Guarani alimenta toda a Bacia do Rio
Paraná: a maior parte dos rios de São Paulo, de Mato Grosso, de Mato
Grosso do Sul – incluindo o Pantanal Mato-Grossense – e grande parte dos
rios de Goiás que correm para o Paranaíba, como o Meia Ponte. Toda essa
bacia depende do Aquífero Guarani, que já chegou em seu nível de base e
está alimentando insuficientemente os rios que dependem dele. Por isso,
os rios da Bacia do Paraná diminuem sua vazão a cada ano que passa.
Então, podemos ter nisso a explicação para a crise da água em São Paulo?
Exato. Como medida de urgência, já estão perfurando
o Arenito Bauru – que é mais profundo que o Botucatu, já insuficiente
–, tentando retirar pequenas reservas de água para alimentar o sistema
Cantareira [o mais afetado pela escassez e que abastece a capital
paulista]. Mesmo se chover em grande quantidade, isso não será
suficiente para que os rios juntem água suficiente para esse
reservatório.
Assim como ocorre no Cantareira, outros
reservatórios espalhados pela região do Cerrado – Sobradinho, Serra da
Mesa e outros – vão passar pelo mesmo problema. Isso porque o processo
de sedimentação no fundo do lago de um reservatório é um processo lento.
Os sedimentos vão formando argila, que é uma rocha impermeável. Então, a
água daquele lago não vai alimentar os aquíferos. Mesmo tendo muita
quantidade de água superficial, ela não consegue penetrar no solo para
alimentar os aquíferos. Se não for usada no consumo, ela vai
simplesmente evaporar e vai cair em outro lugar, levada pelas correntes
aéreas. Isso é outro motivo pelo qual os aquíferos não conseguem
recuperar seu nível, porque não recebem água.
Geologicamente sendo o mais antigo, seria natural
que o Cerrado fosse o primeiro bioma a desaparecer. Mas isso em escala
geológica, de milhões de anos. Mas, pelo que o sr. diz, a antropização
[ação humana no ambiente] multiplicou em muitíssimas vezes esse processo
de extinção.
Sim. Até meados dos anos 1950, tínhamos o Cerrado
praticamente intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a
implantação de infraestrutura viária básica, com a construção de grandes
cidades, como Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente
o ambiente. A partir de 1970, quando as grandes multinacionais da
agroindústria se apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes
monoculturas, aí começa o processo de finalização desse bioma. Ou seja, o
homem sendo responsável pelo fim desse ambiente que é precioso para a
história do planeta Terra.
Em que o Cerrado é tão precioso?
De todas as formas de vegetação que existem, o
Cerrado é a que mais limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se
alimenta basicamente do gás carbônico que está no ar, porque seu solo é
oligotrófico.
“Diz-se que o Cerrado é o contrário da
Amazônia: uma floresta invertida, em confirmação à definição que o sr.
deu sobre o fato de dois terços de cada planta do cerrado estarem
debaixo da terra. Ou seja, a destruição do cerrado é muito mais séria do
que alcança a nossa visão com o avanço da fronteira agrícola. é uma
devastação muito maior, porque também ocorre longe dos olhos,
subterrânea”
Isso faz sentido, porque, na parte subterrânea,
além do sequestro de carbono está armazenada a água, sem a qual não
prospera nenhuma atividade econômica. A Amazônia terminou de ser formada
há apenas 3 mil anos, um processo que começou há 11 mil anos, com o fim
da glaciação no Hemisfério Norte. A configuração que tem hoje existe na
plenitude só há 3 mil anos. A Mata Atlântica tem 7 mil anos. São
ambientes que, se degradados, é possível recuperá-los, porque são novos,
estão em formação ainda.
Já com o Cerrado isso é impossível, porque suas
árvores já atingiram alto grau de especialização. Tanto que o processo
de quebra da dormência de determinadas sementes são extremamente
sofisticados. Uma semente de araticum, por exemplo, só pode ter sua
dormência quebrada no intestino delgado de um canídeo nativo do Cerrado –
um lobo guará, uma raposa. Como esses animais estão em extinção, fica
cada vez mais difícil quebrar a dormência de um araticum, que é uma
anonácea [família de plantas que inclui também a graviola e a ata
(fruta-do-conde), entre outras].
As abelhas europeias e africanas são recentes,
foram introduzidas no século passado. O professor Warwick Kerr, que
introduziu a abelha africana no Brasil, na década de 1950, ainda é vivo e
atua na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São boas produtoras
de mel, mas não estão adaptadas para fazer a polinização das plantas do
Cerrado. As abelhas nativas do Cerrado, que não tem ferrão e são
chamadas de meliponinas – jataí, mandaçaia, uruçu – eram os maiores
agentes polinizadores naturais, juntamente com os insetos, em função de
sua anatomia. Hoje estão praticamente extintas, como esses insetos, pelo
uso de herbicidas e outros tipos de veneno, que combatiam pragas de
vegetações exóticas em lavouras e pastagens. Quando se utiliza o
pesticida para extinguir essas pragas também se mata o inseto nativo,
que é polinizador das plantas do Cerrado. Por isso, se encontram muitas
plantas nativas sem fruto, por não terem sido polinizadas.
A flora do Cerrado é geralmente desprezada. O que ela representa, de fato?
Nós vivemos em meio à mais diversificada flora do
planeta. O Cerrado contém a maior biodiversidade florística. Isso não
está na Amazônia, nem na Mata Atlântica, nem em uma savana africana ou
em uma savana australiana. Nem qualquer outro ambiente da Terra. São
12.365 plantas catalogadas no Cerrado. Só as que conhecemos. A cada
expedição que fazemos, cada vez que vamos a campo, pelo menos 50 novas
espécies são descobertas. Dessas 12.365 plantas conhecidas, somos
capazes de multiplicar em viveiro apenas 180. Isso é cerca de 1,5% do
total, quase nada em relação a esse universo. E só conseguimos fazer
mudas de plantas arbóreas.
Para as demais, que são extremamente importantes
para o equilíbrio ecológico, para o sequestro de carbono e para a
captação de água, não temos tecnologia para fazer mudas. Por exemplo, o
capim-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arnica, o tucum-rasteiro, esses
dois últimos com raízes extremamente complexas. Se tirarmos um
tucum-rasteiro, que está no máximo 40 centímetros acima do nível do
solo, e olharmos seu tronco, vamos encontrar milhares ou até milhões de
raízes grudados naquele tronco. Se tirarmos um pedaço pequeno dessas
raízes e levarmos ao microscópio, veremos centenas de radículas que saem
delas. Uma pequena plantinha com um sistema radicular extremamente
complexo, que retém a água e alimenta os diversos ambientes do Cerrado. É
algo que não se consegue reproduzir em viveiro, porque não há
tecnologia. O que conseguimos é em relação a algumas plantas arbóreas.
Outro aspecto que indica que o Cerrado já entrou em
vias de extinção é que as plantas do Cerrado são de crescimento muito
lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O
capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos. Um buriti atinge 30 metros
de altura com 500 anos. Nossas veredas – que existiam em abundância até
pouco tempo – eram compostas de plantas “nenês” quando Pedro Álvares
Cabral chegou ao Brasil, estavam nascendo naquela época e sua planta
mais comum, o buriti, está hoje com 25 metros, 30 metros.
Mas a tecnologia e a biotecnologia não fornecem nenhuma alternativa para mudar esse quadro?
Para se ter ideia da complexidade, vamos tomar o
caso do buriti, que só pode ser plantado em uma lama turfosa, cheia de
turfa, com muita umidade. Se o solo estiver seco, o buriti não vai
vingar ali. Mas, mesmo se conseguíssemos plantar – o que é difícil,
porque não existe mais o solo apropriado –, aquele buriti só atingiria a
idade adulta e dar frutos depois de muitos séculos. Então, não tem como
tentar dizer que se pode usar técnicas para revitalizar o Cerrado. Isso
é praticamente impossível.
A interface do Cerrado, para falar em uma
linguagem moderna, não é amigável para o uso da tecnologia conhecida.
Não tem como acelerar o crescimento de um buriti como se faz com a soja.
Não dá para fazer isso, até porque as plantas do
Cerrado convivem com uma porção de outros elementos que, para outras
plantas, seriam nocivos. Por exemplo, certos fungos convivem em simbiose
com espécies do Cerrado. Um simples fungo pode impedir a biotecnologia.
Seria possível desenvolver, por meio de tecidos, tal planta em
laboratório. Mas sem aquele fungo a planta não sobrevive. E com o fungo,
mas em laboratório, ela também não se desenvolve. Ou seja, é algo
extremamente complicado, mais do que podemos imaginar.
Mesmo que os mais pragmáticos menosprezem a
importância de um determinado animal ou uma “plantinha” em relação a
uma obra portentosa, como uma hidrelétrica, há algo que está sob ameaça
com o fim do Cerrado, como a água. Isso é algo básico para todos. A
contradição é que o Cerrado – assim como a caatinga e os pampas – não
são ainda patrimônio nacional, ao contrário da Mata Atlântica, o
Pantanal e a Amazônia. Há uma lei, a PEC 115/95 [proposta de emenda
constitucional], de autoria do então deputado Pedro Wilson (PT-GO), que
pede essa isonomia há quase 20 anos. Essa lei ajudaria alguma coisa?
Na prática, não poderia ajudar mais em nada, porque
o que tinha de ser ocupado do Cerrado já foi. O bioma já chegou em seu
limiar máximo de ocupação. Mas o governo brasileiro é tão maquiavélico e
inteligente que, para evitar maiores discussões, no ano passado
redesenhou todo o mapa ambiental brasileiro. Dessa forma, separou o
Pantanal do Cerrado – embora o primeiro seja um subsistema do segundo –,
transformou-o em patrimônio nacional e a área do Cerrado já ocupada foi
ignorada e incluída no plano de desenvolvimento como área de expansão
da fronteira agrícola. Ou seja, o Cerrado, em sua totalidade, já foi
contemplado para não ser protegido.
O que os parques nacionais poderiam agregar em uma política de subsistência do Cerrado?
Existe um manejo inadequado dos parques existentes
na região do Cerrado. Esse manejo começa com o fogo, quando se cria uma
brigada para evitar incêndios no Parque Nacional das Emas, por exemplo. O
fogo natural é importante para a preservação do Cerrado. Ora, se se
trabalha com o intuito de preservar o Cerrado é preciso conviver com o
fogo; agora, se se trabalha com a visão do agrônomo, o fogo é
prejudicial, porque acentua o oligotrofismo do solo. O Cerrado precisa
desse solo oligotrófico, mas, se o fogo é eliminado, as condições do
solo serão alteradas e a planta nativa vai deixar de existir, porque o
solo vai adquirir uma melhoria e aquela planta precisa de um solo pobre.
Assim, quando se barra o uso do fogo em um parque de Cerrado, o
trabalho se dá não com a noção de preservação do ambiente, mas dentro da
visão da agricultura. Raciocina-se como agrônomo, não como biólogo.
Outra questão nos parques é que o entorno dos
parques já foi tomado por vegetações exóticas. Entre essas vegetações
existe o brachiaria, que é uma gramínea extremamente invasora que, à
medida que espalha suas sementes, alcança até as áreas dos parques,
tomando o lugar das gramíneas nativas. No Parque Nacional das Emas já
temos gramínea que não é nativa, o que faz com que haja também vegetação
arbórea, de porte maior, também não nativa. Os animais, em função do
isolamento do parque, não têm mais contato com áreas naturais, como os
barreiros, que forneceriam a eles cálcio e sais naturais. Quando
encontramos um osso de animal morto em um parque vemos que está sem
calcificação completa, porque falta esse elemento, que é obtido lambendo
cinzas queimadas ou visitando os barreiros, que são salinas naturais em
que existe esse o elemento. Geralmente há poucos barreiros nos parques,
o que torna mais difícil a sobrevivência do animal, que acaba entrando
em vias de extinção, o que está acontecendo.
Não há, em nenhum parque nacional criado, aumento
da vegetação nativa ou da fauna nativa. O que há é a diminuição dos
caracteres nativos daquela vegetação, bem como da fauna. Isso prova que
esse isolamento não trouxe benefícios. O que poderia funcionar seria se
essas áreas de preservação estivessem interligadas por meio de
corredores de migração faunística. Isso evitaria uma série de erros
cometidos quando se delimita uma área.
Mas, pelo que o sr. diz, hoje isso seria impossível.
Praticamente impossível, porque as matas ciliares,
que deveriam servir como corredores ecológicos, de migração, foram
totalmente degradadas. A maioria dos rios foi ocupada, em suas margens,
por ambientes urbanos, com a presença do homem, que é um elemento
extremamente predatório. Mais que isso: os sistemas agrícolas
implantados chegam, em alguns locais, até a margem de córregos e rios,
impedindo, também, a existência desses corredores de migração.
Fica, assim, um cenário praticamente inviável. É
triste falar isso , mas, na realidade, falamos baseados em dados
científicos, no que observamos. Sou o amante número um do Cerrado.
Gostaria que ele existisse durante milhões e milhões de anos ainda, mas
infelizmente não é isso que vemos acontecer. Se, por exemplo, você
observar as nascentes dos grandes rios, verá que elas ou estão secando
ou estão migrando cada vez mais para áreas mais baixas. Quando isso
ocorre, é sinal de que o lençol que abastece essa nascente está
rebaixando.
Observe, por exemplo, o caso das nascentes do Rio
São Francisco, na Serra da Canastra; o caso das nascentes do Rio
Araguaia ou do Rio Tocantins, que tem o Rio Uru em sua cabeceira mais
alta. A cada dia que passa as nascentes vão descendo mais. Vai ocorrer o
dia em que chegarão ao nível de base do lençol que as abastece e
desaparecerão.
Ao mesmo tempo em que ocorre esse fenômeno, temos um aumento rápido do consumo de água.
Há o aumento da população. Mas, além do mais, o
Cerrado entrou, nos últimos anos, por um processo extremamente
complicado, que chamamos de desterritorialização. O grande capital
chegou às áreas do Cerrado e expulsou os posseiros que lá moravam, por
meio da falsificação de documentos, da negociata com cartórios e com
políticos. Com a grilagem, adquiriu milhares de hectares e tirou os
moradores antigos da região. Isso desestruturou comunidades inteiras.
Isso ainda ocorre em Goiás e em diversos lugares?
Ocorreu e está ocorrendo. E o que isso provoca? O
aumento das cidades. Quase não há mais cidadezinhas na região do
Cerrado, elas são de médio ou grande porte, porque a população do campo,
desamparada e sem terra, veio para a zona urbana. Essas pessoas vêm
buscar abrigo na cidade, que oferece a eles algum tipo de serviço. Na
cidade, se transformam em outro tipo de categoria social: os sem-teto.
Estes vivem aqui e ali, ocupando as áreas mais periféricas da cidade.
Vão ocupar planícies de inundação, beiras de córregos, entre outros
ambientes desorganizados.
Um homem que vive em um ambiente assim, que nasce, é
criado e compartilha dessa desorganização, terá uma mente que tende a
ser desorganizada. Ou seja, ao fazer a desterritorialização trabalhamos
contra a formação de pessoas sadias. Formamos pessoas transtornadas,
mutiladas mentalmente, ocupando as periferias. Não existe plano diretor
que dê conta de acompanhar o desenvolvimento das áreas urbanas no
Brasil, porque a cada dia chegam novas famílias nessas áreas.
Crescendo em um ambiente desorganizado, sem
perspectivas para o futuro, essas pessoas acabam caindo em neuroses para
a fuga. A neurose mais comum desse tipo é o uso de drogas. Acabam
cometendo o que chamamos de atos ilícitos, mas provocados por uma
situação socioeconômica de limitação, vivendo em ambientes precários.
Essas pessoas constroem sua vida nesses locais, formam famílias e passam
anos ou décadas nesses locais. Só que um dia vem um fenômeno natural
qualquer – como El Niño ou La Niña – que, por exemplo, acomete aquele
local com uma quantidade muito maior de chuva. Então, o córrego enche e
encontra, em sua área de inundação, os barracos daquela população. Aí
começa a tragédia urbana, com desabrigados e mortos. Aumenta, ainda
mais, o processo de sofrimento no qual estão inseridas essas populações.
Hoje vejo muitos profissionais, principalmente
arquitetos, falando em mobilidade urbana. Falam em construir
monotrilhos, linhas específicas para ônibus, corredores para bicicletas,
mas ninguém toca na ferida: o problema não está ali, mas na
desestruturação do homem do campo. Quanto mais se desestrutura o campo,
mais pessoas vêm para a cidade, que não consegue absorvê-las, por mais
que se implantem linhas novas, estações e bicicletários. O problema está
no drama do campo, não na cidade.
Antigamente, se usava a expressão “fixação do homem no campo”. Isso parece que ficou para trás na visão dos governos.
Desistiram porque o que manda é o grande capital.
Os bancos estatais se alegram com as safras recordes, fazem propaganda
disso. Eles patrocinam os grandes proprietários, só que estes não têm
grande quantidade de funcionários, têm uma agricultura intensiva,
mecanizada. Isso não ajuda de forma alguma a manter as pessoas na zona
rural.
Uma notícia grave é a extinção do Cerrado.
Outra, tão ou mais grave, que – pelo que o sr. diz – já pode ser dada, é
que em pouco tempo não teremos mais água. A crise da água no Brasil é
uma bomba-relógio?
A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos
grandes mananciais de água do Brasil, porque as grandes bacias
hidrográficas “brotam” do Cerrado. O Rio São Francisco é uma
consequência do Cerrado: ele nasce em área de Cerrado e é alimentado, em
sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto, que nasce em
Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio
Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e corre para o São Francisco. Se há a
degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco. Você
pode contar no mínimo dez afluentes por ano desses grandes rios que
estão desaparecendo.
Professor Altair Sales fala ao jornalista Elder Dias: "A proteção das águas tinha de ser questão de segurança nacional”
Como o sr. analisa a transposição do Rio São Francisco?
É um ato muito mais político do que científico. Ela
atende muito mais a interesses políticos de grandes proprietários do
Nordeste na área da Caatinga, no sertão nordestino. A transposição está
sendo feita em dois canais, um norte, com 750 quilômetros e outro,
leste, com pouco mais de 600 quilômetros. A água é sugada da barragem de
Sobradinho (BA), através de uma bomba, para abastecer esses canais, com
10 metros de profundidade e largura de 25 metros. Ao fazer essa obra,
se altera toda a mecânica do São Francisco: o rio, que corria lento,
passa a correr mais rapidamente, porque está tendo sua água sugada. Seus
afluentes, então, também passam a seguir mais velozes. Isso acelera o
processo de assoreamento e de erosão.
Consequentemente, aceleram a morte dos afluentes.
Fazer a transposição do São Francisco simplesmente é estabelecer uma
data para a morte do rio, para seu desaparecimento total. Podem até
atender interesses econômicos e sociais de maneira efêmera, em curto
prazo, mas em dez anos acabou tudo.
E será um processo rápido, assim?
Sim, é um processo de décadas. Basta ver o Rio Meia
Ponte, na altura do Setor Jaó. Onde havia uma bonita cachoeira, na
antiga barragem, há só um filete d’água. O nível da água do Meia Ponte é
o mesmo do Córrego Botafogo há décadas atrás. Este praticamente não
existe mais, a não ser por uma nascente muito rica no Jardim Botânico,
que ainda o alimenta. Mas ele só parece mesmo existir quando as chuvas o
enchem rapidamente. Mas, no outro dia, ele vira novamente um filete.
Goiânia foi planejada em função também dos cursos
d’água. Tendo em vista o que ocorre hoje, podemos dizer que ela é,
então, o cenário de uma tragédia hidrográfica?
Eu não diria que apenas Goiânia está realmente
dessa forma. Mas foi toda uma política de ocupação do centro e do
interior do Brasil que motivou essa ocupação desordenada, desde a época
da Fundação Brasil Central, da Expedição Roncador–Xingu, depois a
construção de Goiânia e de Brasília, a divisão de Mato Grosso e a
criação do Tocantins. Isso é fruto do capital dinâmico que transforma a
realidade. Vem uma urbanização rápida de áreas de campo, aumentando as
ilhas de calor e, consequentemente, pela pavimentação, impedindo que as
águas das chuvas se infiltrem para alimentar os mananciais que deram
origem a essas mesmas cidades. Se continuar dessa forma, com esse tipo
de desordenamento, podemos prever grandes colapsos sociais e econômicos
no Centro-Oeste do Brasil. E não só aqui, mas nas áreas que aqui brotam.
O que significa quase toda a área do Brasil, não?
Sim, até mesmo a Amazônia. O Rio Amazonas é
alimentado por três vetores: as águas da Cordilheira dos Andes, que é um
sistema de abastecimento extremamente irregular; as águas de sua margem
esquerda, principalmente do Solimões, que também é irregular, em que
duas estiagens longas podem expor o assoreamento, ilhas de areias – ali
foi um deserto até bem pouco tempo, chamado Deserto de Óbidos. Ou seja, o
Amazonas é alimentado mesmo pelos rios que nascem no Cerrado, como
Teles Pires (São Manuel), Xingu, Tapajós, Madeira, Araguaia, Tocantins.
Estes caem quase na foz do Amazonas, mas contribuem com grande parte de
seu volume. Ou seja, temos o São Francisco, já drasticamente afetado; o
Amazonas, também afetado; e a Bacia do Paraná, afetada quase da mesma
forma que o São Francisco, provavelmente com período de vida muito
curto.
Será um processo tão rápido assim?
Uma vez que se inicia tal processo de degradação e
de diminuição drástica do nível dos lençóis, isso é irreversível. Em
alguns casos duram algumas décadas; em outros, até menos do que isso.
Temos exemplos clássicos no mundo de transposições de rios que não deram
certo e até secaram mares inteiros. No Mar de Aral, no Leste Europeu,
há navios ancorados em sal. Sua drenagem é endorreica, fechada, sem
saída para o oceano. A União Soviética, na ânsia de se tornar
autossuficiente na produção de algodão, fez a transposição dos dois rios
que abasteciam o mar. Resultado: no prazo de uma década, as plantações
não vingaram, o mar secou e uma grande quantidade de tempestades de
poeira e sal afetam 30 milhões de pessoas, causando doenças
respiratórias graves, incluindo o câncer.
Com nossos rios, acontecerá o mesmo processo. A
diferença é que o processo de ocupação aqui foi relativamente recente, a
partir dos anos 1970. São 40 e poucos anos. Ou seja: em menos de meio
século, se devastou um bioma inteiro. Não acabou totalmente porque ainda
há um pouco de água. Mas, quando isso acabar, imagine as convulsões
sociais que ocorrerão. Enquanto se está na fartura, você é capaz de
repartir um copo d’água com o irmão; mas, no dia da penúria, ninguém
repartirá. Isso faz parte da natureza do ser humano, que é
essencialmente egoísta. Isso está no princípio da evolução da
humanidade. A Igreja Católica chama isso de “pecado original”, mas nada
mais é do que o egoísmo, apossar-se de determinados bens e impedir que
outros usufruam deles. Isso já levou outros povos e raças à extinção. E
pode nos levar também à extinção.
Até bem pouco tempo tínhamos duas humanidades: o
homem-de-neanderthal, o Homo sapiens neanderthalensis; e o Homo sapiens
sapiens. Hoje podemos falar também em duas humanidades: uma humanidade
subdesenvolvida, tentando soerguer em meio a um lodo movediço; e outra
humanidade, que nada na opulência. A questão é que, se essa situação
persistir, brevemente teremos a pós e a sub-humanidade.
É um cenário doloroso.
É doloroso, mas são os dados que a ciência mostra.
Tem jeito, tem perspectiva para um futuro melhor? Possivelmente, a saída
esteja na pesquisa. Mas uma pesquisa precisa de um longo tempo para que
apareçam resultados positivos. E nossas universidades não incentivam a
pesquisa, o que é muito triste, porque essa é a essência de uma
universidade.
O sr. vê, em algum lugar do mundo, trabalhos e pesquisas pensando em um mundo mais sustentável?
Não. O que existe é muito localizado e incipiente.
Não tem grande repercussão. Mas, mesmo se fossem proveitosas, jamais
poderiam ser aplicadas ao Cerrado, que é um ambiente muito peculiar.
Teria de haver pesquisa dirigida especialmente para nosso bioma. Como
recuperar uma nascente de Cerrado? Eu não sei dizer. Um engenheiro
ambiental também não lhe dará resposta. Nenhum cientista brasileiro sabe
a resposta, porque não temos pesquisas sobre isso. Talvez poderíamos
ter um futuro melhor se houvesse investimentos em pesquisa.
E a educação ocupa que papel nesse contexto sombrio?
Nós, como educadores, deveríamos pensar mais nisso –
e eu penso: talvez ainda seja tempo de salvar o que ainda resta, mas se
não dermos uma guinada muito violenta não terá como fazer mais nada. É
preciso haver real mudança de hábitos e mudar a forma de observar os
bens patrimoniais do planeta e da nossa região. A água tinha de ser uma
questão de segurança nacional. A vegetação nativa, da mesma forma. Os
bens naturais teriam de ser tratados assim também, porque deles depende o
bem-estar das futuras gerações. Mas isso só se consegue com
investimento muito alto em educação, mudando mentalidade de educadores.
As escolas têm de trabalhar a consciência e não apenas o conhecimento.
Uma coisa é conhecer o problema; outra, é ter consciência do problema. A
consciência exige um passo a mais. Exige atitude revolucionária e
radical. Ou mudamos radicalmente ou plantaremos um futuro cada vez pior
para as gerações que virão.
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